#SerMãeNegra: “Enquanto fingimos que o racismo não existe, essas mulheres estão morrendo”

A pesquisadora Fernanda Lopes e a parteira Ariana Santos levantam ideias sobre o que poderia ser feito para diminuir a desigualdade na maternidade negra

Por Aline Melo com Vanessa Lima no Revista Crescer

Mulheres negras têm maiores chances de um pré-natal inadequado (Foto: Thinkstock)

“Mulheres negras morrem duas vezes mais por causas relacionadas à gravidez”. A manchete com que iniciamos nosso especial #SerMãeNegra é fruto de um aumento considerável de pesquisas raciais no Brasil de dois anos para cá. Se reconhecer o problema é o primeiro passo para solucioná-lo, a caminhada até lá ainda é longa e repleta de percalços.

Fernanda Lopes, que estuda a manifestação do racismo na saúde e integra o grupo de Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), reforça que esses dados não são novidade. A pesquisa Nascer no Brasil, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) por exemplo, traz informações que a pesquisadora Maria do Carmo Leal já havia identificado em 2009, como a dificuldade no acesso a anestesia e o pré-natal inadequado de mulheres negras. Nos últimos anos, outros dados oficiais foram divulgados, mas as ações ainda deixam a desejar.

“Essa desigualdade só não melhora porque não há ações específicas para isso. Apesar de os dados estarem aparecendo, se você não reconhece e ataca o racismo, nada vai mudar. É essencial que isso seja trazido na forma de dados, mas não podemos nos conformar na única e exclusiva apresentação desses. E essas vidas que a gente perde, quando isso vai contar?”, levanta Fernanda.

Apesar de reconhecer os investimentos do Estado para melhorar o pré-natal, como é o caso do programa Rede Cegonha, que incentiva o parto normal humanizado no Sistema Único de Saúde (SUS), a pesquisadora aponta a necessidade de investimentos específicos para monitorar e resolver a questão do preconceito institucional. “É preciso investir em gestão, na formação desses profissionais… Um processo continuado, que desenvolva esse olhar para os direitos humanos dentro da saúde. Enquanto o racismo não for enxergado como violação de direitos, tudo fica muito complicado”, destaca.

A parteira Ariana Santos, idealizadora do Sankofa, projeto que atende a gestantes da periferia do Rio de Janeiro por um valor simbólico, reforça que a formação dos profissionais é um ponto central. “Estou fazendo uma pesquisa sobre racismo institucional e o que vejo é que no currículo desses profissionais da saúde não aparece a mulher negra. O Ministério entende que existe um racismo, que isso está matando mulheres, mas ainda assim esse assunto não vai para a sala de aula”, explica. “A gente ainda tenta colocar o paninho por cima do racismo. E enquanto fingimos que o racismo não existe, essas mulheres estão morrendo”, completa.

Mesmo com essa formação deficitária, é possível notar um movimento de mudança dentro do setor de saúde, em muito por parte do controle social – exercido pela população negra, mas não só ela. Um dos avanços conquistados é a portaria 344 de 2017 do Ministério da Saúde, que tornou obrigatório o registro do quesito cor nos documentos dentro do SUS. Outro mecanismo de cobrança tem sido a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, capítulo do estatuto da igualdade racial que deveria ter força de lei dentro do SUS.

Isso significa que, se uma gestão deixar de implementá-la, não usando o quesito cor como instrumento, por exemplo, ou não investindo na monitoração e combate do racismo ali, toda a instituição poderia ser responsabilizada. “Normalmente, pensamos que a responsabilização legal é de quem está atendendo, mas ela recai sobre todos, por serem coniventes com isso. Infelizmente, isso é algo de que grande parte do controle social ainda não se apropriou”, explica Fernanda.

A conclusão é que, quando falamos em soluções para o racismo institucional, que permeia o atendimento à saúde, não se trata de uma ou outra iniciativa, mas de um conjunto delas. “Estamos falando de racismo, a base da sociedade brasileira. Não tem uma saída fácil. É preciso ter metas diferenciadas para reduzir essa desigualdade, prestar contas para verificar se o investimento tem sido eficiente, investir na formação de profissionais conscientes e em mais pesquisas para avaliar a magnitude desse quadro, para então desenvolver medidas, fortalecer a sociedade civil”, afirma Fernanda.

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