Sobre ilustrações e negros: a importância de ser representado

Passeando pela internet me deparei com este um instrucional, publicado pelo site do Instituto Geledés, sobre como ilustrar pessoas negras.

por Ariane Couto Costa Enviado para o Guest Post do Portal Geledés

Em poucas palavras, ele me fez lembrar de uma ocasião em que, na empresa onde trabalho, num projeto que falávamos das possíveis confluências negras e indígenas na produção de certas cerâmicas achadas num sítio arqueológico em SP, solicitamos ao ilustrador, que produzisse uma ilustração sobre esse tema. Para minha supresa (e apenas minha, numa equipe de cerca de 10 pessoas!) as ilustrações continham apenas indígenas e brancos carregando as cerâmicas. E de repente percebi que em toda a exposição, mesmo num painel em que a narrativa falasse sobre a influência negra na produção dessas cerâmicas, apenas imagens de indígenas estavam representadas.

Numa das reuniões da comissão curatorial, pontuei a questão. Sem mais, a sugestão foi acolhida pela coordenação da exposição, que solicitou a refação da ilustração, incluindo aí, sobretudo neste painel que falava explicitamente da influência negra na produção dos artefatos arqueológicos em questão, também uma ilustração de uma pessoa negra. Entendendo a questão mais profundamente, a coordenadora solicitou ao experiente ilustrador que a figura fosse não apenas de um negro, mas de uma mulher negra.

Eu, que além da produção estava também co-coordenando a formação da equipe de mediação da exposição, de repente, fui surpreendida mais uma vez: uma das educadoras, mestre em história social, não concordava e dizia que não achava pertinente a ilustração de uma mulher negra naquele painel, afinal, segundo ela “não havia como ter certeza de que era uma mulher negra que objetivamente produzira aquelas peças específicas e que ela não achava justo sugerir isso ao público”.

À época apenas respirei fundo e, pacientemente, argumentei que os estudos arqueológicos podiam aferir isto a partir de uma série de estudos de tradição e decoração, como a própria pesquisa que dera argumento à exposição confirmava.Ademais,como a exposição já estava recheada de ilustrações que aludiam aos indígenas e que afinal, sim, cientificamente era comprovado de que os traços presentes naquelas cerâmicas eram mistos e não apenas puramente indígenas, era justo deixarmos a ilustração da mulher negra naquele painel.

Um guia de como ilustrar pessoas negras? Pra quê? Parece óbvio, parece natural, parece que nem é preciso falar sobre isso… mas minha experiência aqui narrada mostra que não. É preciso falar, pois, mesmo e principalmente nos meios mais “cultos” o preconceito e a invisibilização dos negros e negras na história é perpetrada, calcificada, reiterada. Eu pergunto: por que incomodou tanto a educadora, especialista em humanidade (em história social!!!!) um simples desenho, que representasse uma mulher negra? Por que ela se sentiu tão empoderada para questionar a decisão, que afinal, sequer era de seu escopo de trabalho? Por que ela achava absurdo “sugerir” visualmente a presença de pessoas negras na temática, quando as pesquisas o indicavam?

Não teria ela nunca se questionado sobre o excesso de representação da cor branca na TV, na publicidade, nos livros, na história do Brasil? Esses excessos de representações brancas não são, por acaso, lesivos à interpretação da história pelos negros e pelos brancos que aprendem com ela que “negros=escravos” na história (termo “escravo” que ainda hoje muitos historiadores teimam em utilizar, cunhando as milhões de pessoas negras aqui presentes no período colonial única e exclusivamente pelo papel que foram obrigadas a cumprir) ao invés de “negros escravizados”, qualificando a pessoa primeiro e, depois, sua degradante condição?

Por isso é que é fundamental que os negros e negras estejam presentes em todos os lugares, equitativamente. Porque apenas uma pessoa negra, talvez, perceba, note e mude algo na representação proposta pelos brancos. Por isso é preciso mais e mais historiadores negros, cientistas negros, antropólogos negros, matemáticos negros, publicitários negros, cineastas negros, ilustradores e artistas negros. Porque se pessoas negras estão presentes em todos os contextos, elas irão, talvez, se colocar e solicitar representatividade.

De certo, se houvesse mais e mais representações de negros e negras integrados à sociedade, a moça não teria se espantado e escandalizado tanto com o fato de que sim, nós negros contribuímos com a sociedade. Meus ancestrais, principalmente, índios e pretos é quem edificaram, com seu sangue, a riqueza desse país. E não aceitaremos mais que pessoas como aquela historiadora social, cale nossa presença.

Luc – Twitter

Porque representatividade importa! Como desenhar personagens negros sem cair em esteriótipos

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade

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