(…) Mente e pele negra e sangue de valente
Sangue corajoso de mulheres de peito
Que não fogem a luta, não fica no desespero
Essa é minha gente brava brasileira
Churrasco, chimarrão e nossas fronteiras (…)
Sou dos pampas, sou do sul
Sou gaúcha, sou gaudéria, tenho o céu azul
A minha rima vai do norte ao Rio Grande do Sul.
Música Tradição de Negra Jaque
Do Sou do poeta Oliveira Silveira ao Sou da cantora Negra Jaque, existe a afirmação da existência singular do povo negro no Rio Grande do Sul (RS). Contrariando todos os processos de apagamento da presença negra no estado, nós estamos aqui, nós existimos e eu sou, porque nós somos. Por meio de projetos históricos de branqueamento e europeização da população sulista, que perpassaram a educação, a construção da identidade gaúcha foi caracterizada pela negação do negro e do indígena. A respeito disso, em uma perversa continuidade de narrativas excludentes, permanece até hoje a ideia de que somente o capital cultural e humano europeu estaria presente no Rio Grande do Sul. Tais afirmações, que causam silenciamentos e invisibilidades, se tratam de um estelionato intelectual reproduzido por séculos sobre a história desta região.
Desde o início da formação do Rio Grande do Sul, o povo negro é a base desse estado (desde as charqueadas) e no seu episódio mais marcante, a Farroupilha, lanceiros negros foram a “bucha de canhão”, moeda de troca para o êxito dos senhores estancieiros. Se não fosse o sal das lágrimas e do suor do povo negro no charque e na guerra, esta economia não teria tido êxito.
No entanto, o silêncio quase absoluto sobre a participação efetiva e decisiva da população negra na construção do Rio Grande do Sul vem sendo contraposto desde a chegada dos primeiros afro-brasileiros, sobretudo pelas mulheres negras. Atuando de diversas formas, historicamente mulheres negras em movimento transformam ausências em presenças e rompem com a centralidade cultural eurocêntrica. Afirmam politicamente a matriz africana gaúcha, questionando descrições colonialistas sobre a formação da região, e problematizando o papel da própria História. É o que se manifesta na crítica apresentada pela pedagoga pelotense Maria Helena Silveira no livro “Negrada”, publicado em 1994: “Existem fatos que não podem ser omitidos para que o negro seja respeitado. Ao contrário, irá parecer que no sul não existiu a força do negro na colonização”.
Nessa direção, no que concerne ao Rio Grande do Sul, foram as professoras negras, em sua grande maioria, que tomaram a frente na organização destas posturas e ações de superação do racismo no estado, como aponta Lúcia Regina B. Pereira: As professoras Ivete Eanes, Vera Regina Triumpho, Zenóbia Lúcia de Deus, Terezinha Juraci, Maria Marques, Marilene Leal Paré, entre outras, fundaram em 1987 o Projeto Negro e Educação no estado, protagonizando uma organização institucional de educadores negros que se iniciou nos trabalhos pedagógicos com Agentes de Pastoral Negros nos anos 70.
Podemos conhecer a atuação da professora Geraldina da Silva, que em entrevista à revista Tição de 1978 apresentou sua concepção pedagógica pautada na “honestidade” onde “se a educação for bem dirigida, a criança vai chegar, automaticamente, à verdade e poderá ter opinião própria. A educação tem que ser aberta”.
Assim, ser e se tornar professora, para mulheres negras, não tem como objetivo somente a profissionalização para inserção no mercado de trabalho, mas também se torna uma ação política, onde a educação se converte em um espaço de disputa de narrativas, de afirmação de existência nesse sul que se pretende branco.
No texto “Educação dos Negros e das Negras”, de Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, que compõe a obra Negro em preto e branco: história fotográfica da população negra de Porto Alegre, organizado pela fotógrafa e historiadora Irene dos Santos, a autora apresenta o caráter coletivo da promoção à educação pela população negra em Porto Alegre: “Educar-se, para nós negros, não é caminho de realização individual. Toda a comunidade que representamos e da qual fazemos parte, se afirma, torna-se mais forte com a nossa realização”.
Neste sentido, podemos verificar que a ascensão social, pelo viés da educação, longe de ser somente uma demanda individual, constituiu-se entre os grupos negros como uma conquista coletiva. Uma das formas de organização do Movimento Negro foi a imprensa negra, que atuou na denúncia das condições precárias da população negra, mas também teve papel educativo, informando e politizando os grupos negros. Em Porto Alegre, o jornal O Exemplo circulou entre 1892 e 1930 e sua principal reivindicação foi a instrução do povo negro.
Da mesma forma, o jornal A Alvorada (1907-1965), do município de Pelotas, reunia membros de diferentes associações da cidade. Em 7 de setembro de 1934 o periódico divulgou a Campanha Pró-Educação da Frente Negra Pelotense (FNP) e manifestou os ideais de unificação da raça negra em torno do ideal da instrução, conforme estudo de Fernanda Oliveira sobre os associativismos negros em Pelotas.
Na luta nacional no que se refere à Educação, foi principalmente a partir da década de 1940 que o Movimento Negro ocupou os espaços institucionais que realizavam o debate educacional, como os fóruns e as conferências. Mas, sem dúvidas, foi a partir da Conferência de Durban que intensificou as transformações por dentro da institucionalidade do Estado brasileiro. Como efeitos das mobilizações negras, no ano de 2003, foi promulgada a Lei 10.639, tornando obrigatório o ensino de histórias e culturas afro-brasileiras e africanas. Tal lei foi regulamentada pelo Parecer CNE/CP 003/2004 (elaborado pela professora gaúcha Petronilha B.G. Silva) que fundamentou a aprovação das “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”. Assim, a Educação das Relações Étnico-Raciais trata-se de uma política pública com caráter de projeto social, criando novas exigências e possibilidades em todas as áreas de conhecimento do ensino, inclusive na Educação Superior.
No âmbito das Políticas de Ações Afirmativas, Porto Alegre tornou-se a primeira capital do país a implementá-las em todos os concursos municipais, já em 2003. Na educação dá-se na forma da Lei Municipal 6.889/91, que teve incluído na disciplina de História o estudo da Raça Negra na formação sociocultural brasileira. Assim, o pioneirismo na instituição de políticas antirracistas no município aconteceu pelas articulações do Movimento Negro com as instâncias do poder público municipal. Adentrando estes espaços institucionais educativos, professoras e professores negros afirmam existências no estado, disputam a história e o currículo, presenças e oferecem contraponto à violência racista deste espaço que executa o epistemicídio negro na sua formação.
No contexto de invisibilização da presença negra no Rio Grande do Sul, a luta política das professoras negras em reivindicação à instrução e a afirmação do pensamento social negro pela construção de políticas públicas ao longo do século, contradiz veementemente o apagamento da presença negra no estado. Desta forma, com os seus processos inventivos e estratégias, a população negra gaúcha elaborou nesse espaço suas pedagogias e suas intervenções próprias nos processos educativos, principalmente professoras negras, com base nas suas experiências como mulheres negras que forjam saberes e práticas pedagógicas específicas e eticamente posicionadas. Podemos perceber esses processos como (re)existências, ou seja, além de criar formas de resistências/enfrentamentos contra as violências do racismo nesse contexto histórico regional do país, a população negra forjou outras formas de existências (desestabilizando as concepções limitadas do que é ser gaúcho/a) e de concepções de educação. Parafraseando Oliveira Silveira, Poetas Vivos e Negra Jaque, “Tem Pretos e Pretas no Sul”, “Sou” e somos “Sangue corajoso de mulheres”, reafirmamos nossas existências, e assim como já feito pelas professoras que nos antecederam, continuamos a construção de pedagogias de afirmação.
Assista ao vídeo da historiadora Priscila Nunes Pereira no Acervo Cultne sobre este artigo:
Nossas Histórias na Sala de Aula
O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):
Ensino Fundamental: (EF05HI07) Identificar os processos de produção, hierarquização e difusão dos marcos de memória e discutir a presença e/ou a ausência de diferentes grupos que compõem a sociedade na nomeação desses marcos de memória; (EF07HI12) Identificar a distribuição territorial da população brasileira em diferentes épocas, considerando a diversidade étnico-racial e étnico-cultural (indígena, africana, europeia e asiática); (EF08HI14) Discutir a noção da tutela dos grupos indígenas e a participação dos negros na sociedade brasileira do final do período colonial, identificando permanências na forma de preconceitos, estereótipos e violências sobre as populações indígenas e negras no Brasil e nas Américas; (EF08HI20) Identificar e relacionar aspectos das estruturas sociais da atualidade com os legados da escravidão no Brasil e discutir a importância de ações afirmativas; (EF09HI04) Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil.Ensino médio: (EM13CHS102) Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais (etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade, cooperativismo/desenvolvimento etc.), avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos; (EM13CHS501) Analisar os fundamentos da ética em diferentes culturas, tempos e espaços, identificando processos que contribuem para a formação de sujeitos éticos que valorizem a liberdade, a cooperação, a autonomia, o empreendedorismo, a convivência democrática e a solidariedade; (EM13CHS502) Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais.
Priscila Nunes Pereira
Professora na rede municipal de educação de Guaíba -RS
Doutoranda em Educação PPGEDU UFRGS
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