“Territórios repatriados”: uma chave de leitura da agência de mulheres negras

Oito anos antes de bell hooks, pensadora afro-estadunidense, lançar seu livro Ain’t i a woman: Black Women and Feminism, em 1982, ela resolveu comentar num jantar sua proposta e imediatamente foi questionada em tom jocoso: “O que há para se dizer sobre as mulheres negras?”. Nos Estados Unidos de pouco mais de quarenta anos atrás, esse questionamento era um sarcasmo. No Brasil atual, essa mesma pergunta é feita de diversas formas, às vezes não tão direta, seguindo os protocolos da dita cordialidade brasileira.

Durante muito tempo a resposta foi bem objetiva e ao mesmo tempo castradora: essas questões não importam. São o que podemos chamar de ausências insignificantes. Ao observar o levante dos Movimentos Sociais, era eficaz o silenciamento das mulheres negras, de suas demandas políticas e sociais e do protagonismo de suas ações. Eram indivíduos, pois carregavam responsabilidades civis. No entanto, não eram vistas como sujeitos de direitos e deveres que poderiam escolher como atuar no mundo. 

Ocorre que as mulheres negras brasileiras são constituídas em processos plurais, nos termos das relações sociais, raciais e de gênero. Essa multiplicidade de sujeitos gera códigos de condutas próprios, que estão sendo reescritos pelos processos crescentes de representatividade e protagonismo. Isso produz deslocamentos individuais e coletivos para fora dos espaços de controle e assujeitamento, que são os “territórios repatriados”. Essa categoria leva a um questionamento interessante: O que mudou, nessas últimas décadas, para o coletivo das mulheres negras?

Os territórios repatriados são espaços de aprisionamento que foram reconquistados e ressignificados pelas mulheres negras. Em oposição aos limites de atuação desses sujeitos, de interdição de autonomia de outros momentos, o processo de reconstrução das subjetividades de mulheres negras – nessa interseção entre ser negra e mulher – tem significado o refazer de outras formas de se tornar mulher negra. Isso representa a ampliação das ocupações dos territórios de atuação, reconfigurando-os. Ao mesmo tempo, novos espaços são elaborados, construindo novas epistemologias para o campo de estudo de mulheres negras, do particular para o coletivo, rompendo as matrizes de dominação de gênero, raça (conceito político e social) e classe.

Segundo Patrícia Hill Collins, no livro Pensamento Feminista Negro, o movimento de mulheres negras é além de tudo uma ação emergencial para os quatro cantos do mundo. Ele fala do apartheid global de gênero presente na condição de pobreza que se reorganiza e se condensa sobre esses sujeitos. Nesse sentido, apesar dos avanços conquistados ao redor do mundo com políticas públicas, sanitárias, sociais, entre outras, independentemente da região, as mulheres negras são as que detêm maior índice de pobreza. Assim, “as mulheres negras constituem um dos grupos mais pobres no Brasil, assim como as afro-americanas nos Estados Unidos. Da mesma forma, no contexto da pobreza das mulheres no mundo, as mulheres africanas continuam entre as mais pobres”.

Ou seja, ainda somos a expressão da desigualdade social e de renda do país, ao mesmo tempo em que somamos a maior parte da população. De acordo com pesquisa para a Folha de São Paulo em 2019, somos o maior contingente de trabalhadores: 60 milhões de mulheres entre 15 e 65 anos, pouco mais de 28% do total, ocupando cargos com os menores salários. Ainda que na mesma posição que qualquer outra pessoa, recebemos menos da metade que os homens brancos com as mesmas condições de trabalho e qualificação. Temos as maiores taxas de desemprego (6,6%) e no alto escalão executivo somos apenas 0,4%. Somos aquelas que mais perdem seus filhos. Somos ainda o retrato da família brasileira: a mãe solo que vive na pobreza. Temos os mais baixos níveis de escolaridade. Estamos à frente apenas dos homens pretos. Somos a maior parcela dos inaposentáveis. Dos usuários do SUS, 70% são mulheres; e dessas configuramos 60,9%. Das casas chefiadas por mulheres negras, 63% estão abaixo da linha da pobreza e pouco mais de 20% na linha da miséria. Somos 66% das vítimas de feminicídio e 73% das vítimas de violência sexual no Brasil. A pesquisa aponta ainda que movimentamos 704 bilhões de reais por ano, equivalendo a 16% do consumo nacional, sendo 24% da força de trabalho do país. 

Apesar desses números, permanecemos imperceptíveis. Até mesmo o neoliberalismo, que a todos vê e engole, nos ignora como mão de obra especializada, enquanto nos mantém na base da pirâmide social, explorando nossa mão de obra como força desqualificada, enquadrando negativamente e deslegitimando nossas conquistas.

Fruto de resistência centenária, o avanço da autoestima da comunidade negra tem sido expresso no aumento da autodeclaração de pretos e pardos nos últimos anos. Somamos 56% da população. Isso se deve aos movimentos de amor pela própria negritude, de deslocamentos, de autodescolonização e de solidariedade entre uma população racialmente constituída como problema, mas que se reorganiza em subjetividades coletivas. 

Nesse cenário, os deslocamentos realizados pelas mulheres negras em todas as esferas sociais possíveis, sobretudo no campo das ideias, culminam na organização de ajuntamentos negros. Embora os coletivos de mulheres negras não tenham começado nas academias, há uma intelectualidade formada a partir de relações interpessoais ali estabelecidas, promovendo uma interconectividade entre raça, gênero, classe, sexualidade e religião, como descrito por bell hooks. As mulheres negras criaram espaços e lugares seguros para sua prole, seja ela biológica ou intelectual. Aquilombaram-se nesses espaços para resistir.

Segundo Collins, uma das formas de resistência é desenvolver o pensamento feminista negro, apresentando suas posições de vida entre mulheres negras que não são comumente vistas como intelectuais. De fato, as intelectualidades negras não são necessariamente acadêmicas, ou encontradas apenas na classe média ou nos poucos espaços elitizados ocupados por negros. 

Temos desenvolvido a solidariedade feminina, alimentando o autoamor, a autorrecuperação e autodeterminação formando espaços seguros, apoiando-nos pelas caminhadas das nossas patrícias em todas as esferas sociais. Como observa Pearl Cleage: “temos de entender de forma clara que somos um grupo único, inegavelmente distinto em razão de raça e sexo, como o conjunto único de desafios”. Ou seja, não podemos nos dispersar. Nossas identidades coletivas, sociais, raciais, nossas subjetivações – o olhar crítico coletivo negro – devem confrontar a supremacia branca que insiste em nos definir, pois nós que nos conceituamos. Quando algo é definido externamente, torna-se estático. Essa não é a nossa forma de movimentar o mundo.

Há quem diga que mulheres negras e o “povo preto” estão na moda; que estamos acontecendo tão somente por força das políticas públicas que nos definem como inferiores e nos dão uma ajudazinha. Afinal, o país é meritocrático. Somos diariamente bombardeados por essas práticas criminosas de racismo. Esses são reflexos sobre nossas ações contra as práticas de assujeitamento das matrizes de dominação. Aqueles que se colocam no lugar da referência estão reterritorializando suas práticas de controle e ampliando as bases das estruturas racistas, as quais estamos sacudindo a partir dos nossos deslocamentos diários, necessários à nossa emancipação.

Construímos um legado. A história das mulheres negras no Brasil carrega a história do povo brasileiro. Em toda e qualquer base social, há uma mulher negra a sustentá-la. Muitas foram as ativistas negras brasileiras como Lélia Gonzalez, a pioneira do feminismo negro no Brasil e militante do Movimento Negro; sua parceira Beatriz Nascimento; Luiza Bairros; Neusa Santos; Cláudia Pons Cardoso, fundadora do Grupo de Mulheres Negras Maria Mulher; a filósofa Sueli Carneiro, também doutora em educação, fundadora de Geledés – Instituto da Mulher; e a médica Jurema Werneck, doutora em Comunicação e Cultura, fundadora de Criola/RJ. Essas, entre outras construtoras do Movimento de Mulheres Negras e do Movimento Feminista Negro, vêm fazendo desses deslocamentos um movimentar-se constante com base em suas autoconstituições como mulheres negras intelectuais. Algo impensado há um século e laborioso para o século XXI.

Lélia Gonzalez (1935-1994), década de 1980. Fonte: Acervo Lélia Gonzalez.

Maria Beatriz Nascimento (1942-1995), historiadora. Foto: Elisa Larkin Nascimento.

Segundo Beatriz Nascimento: “Nós, na década de 70, éramos mudos. E os outros surdos a nós. A partir de 70, começamos a falar”. Penso que devemos acrescentar a esse trecho, com todo o respeito que essa grande patrícia merece, que agora sabemos como a extensão do nosso barulho estava na base. Sempre falamos, nos erguemos e sobrevivemos. Sabemos ainda que, no século XXI, estamos colhendo arduamente o fruto de nossa resistência. Nosso aquilombamento tem enegrecido a história do Brasil. Fácil nunca foi, tampouco agora, mas chegamos até aqui, a esse território repatriado de sujeitos históricos plurais, negros, femininos em constante movimento, que constroem seu próprio lugar. Não recuaremos!

Assista ao vídeo da historiadora Patricia Teixeira Alves no Cultne.TV sobre este artigo:

https://youtu.be/SsG_ma5DZX4

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):

Ensino Fundamental: EF09HI36 (9º ano: Identificar e discutir as diversidades identitárias e seus significados históricos no início do século XXI, combatendo qualquer forma de preconceito e violência); EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); EF09HI04 (9º ano: Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil); EF09HI08 (9º ano: Identificar as transformações ocorridas no debate sobre as questões da diversidade no Brasil durante o século XX e compreender o significado das mudanças de abordagem em relação ao tema); EF09HI09 (9º ano: Relacionar as conquistas de direitos políticos, sociais e civis à atuação de movimentos sociais).


Patricia Teixeira Alves

Doutoranda em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO), mestra em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), graduada e especialista em História pela Universidade do Estadual da Bahia (Uneb). E-mail: [email protected]; Instagram: @putz_patricia.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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