“Thereza” | Atlânticos em transe sob a lua de Luanda, por Cidinha da Silva. Ep.3

FONTEPor Cidinha da Silva, do FOLHETIM | Sesc Pompeia
Ilustração: Okun

No caminho de volta ao hotel, atravessei o terminal de ônibus, ladeei laterais de construções suntuosas à base de muito concreto próximas à orla, nas ruas interiores me deparei com prédios baixos e antigos que pareciam edifícios administrativos.

Metros à frente, um rapaz entre as duas dezenas de homens militarizados do caminho elogiou meus óculos escuros, escorado a uma arma quase do seu tamanho. Achei prudente sorrir, fingindo agrado, agradecer a gentileza e apertar o passo. Concluí, kota, que a rua é mesmo assim, dá o lenitivo de que você precisa, mas logo te desafia.

Era domingo, dia de praia. Gente negra a perder de vista, mais do que no piscinão de Ramos, no comércio de Madureira ou nas praias do subúrbio ferroviário de Salvador. Gente negra como nunca vi. Nenhum pingo de leite no meio. Praia de pobres. Findo o dia extenso que só terminaria com o cair da noite, o pessoal caminharia por quilômetros até as casas, uma hora, hora e meia no asfalto quente.

Avistei Thereza. Ela se acocorou, recostou-se a um muro de madeira que protegia a construção de um novo empreendimento comercial, colocou o vestido entre as pernas e acomodou a peneira com os pacotinhos de amendoim açucarado. A bolsa de dinheiro ela escondia junto do peito. Cinquenta kwanzas custavam os saquinhos menores, 100 kwanzas, os mais providos.

Dirigia-me ao Fortaleza para jantar meu bacalhauzinho costumeiro, passei pertinho de Thereza e tentei cumprimentá-la, mas Thereza não me viu. Thereza era bonita, muito bonita, e eu disse isso a ela. Ela sorriu, pareceu feliz ao ser elogiada. Notei também a beleza do sorriso e me perguntei como conseguia mantê-lo saudável, em meio a tanta pobreza. Que sumo de folhas locais sustentaria o charme e a saúde daqueles dentes diastêmicos?

Conto-lhe que meu pai fazia daquele amendoim para mim e para meus irmãos quando éramos crianças. Por algum motivo ela depreendeu que eu não sabia prepará-los e se prontificou a me ensinar: a cada quilo de amendoim, dois quilos de açúcar. Explicou-me como preparar a calda, mas decidiu que precisaria me levar até sua casa para me ensinar direito. Também encontrei pelas ruas de Luanda uma versão de coco açucarado dos meus dias de infância.

Thereza tinha 29 anos, uma filha de 15 que vivia com ela e um filho de 12, cujo paradeiro não mencionou. Moravam no bairro Boa Vista, para o qual ela seguiria a pé se não conseguisse um táxi que não ultrapassasse os 150 kwanzas. Se vendesse todos os saquinhos de paracuca, se o pessoal da praia comprasse tudo para segurar a fome na longa caminhada que fariam até as respectivas moradas, Thereza obteria entre 400 e 600 kwanzas. Comprei três pacotes grandes de paracuca e paguei com uma nota de 1.000 kwanzas. Antes que ela contabilizasse o troco, disse-lhe que era dela. Como você sabe, kota, aquela foi uma operação feita com 10 reais. Dez reais! Prometi que iria à casa dela quando voltasse a Luanda.


Cidinha da Silva/Foto: Daisy Serena

Cidinha da Silva (MG) publicou entre outros livros, os premiados: “Um Exu em Nova York” (Biblioteca Nacional, 2019) e “O mar de Manu” (APCA 2021, melhor livro infantil). Tem dois livros no acervo do PNLD Literário (FNDE), “Os nove pentes d’África” (2020) e “Oh, margem! Reinventa os rios!” (2021). Suas obras integram ainda outras políticas públicas de formação de acervo nas escolas do Brasil. É curadora de Almanaque Exuzilhar (Youtube), conselheira da Casa Sueli Carneiro e doutora em Difusão do Conhecimento.


Leia os episódios anteriores

Episódio 1

Episódio 2

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