Fui até lá para dar materialidade ao pensamento e às palavras. Escorei as mãos entorpecidas no muro baixo da casa velha e bati os pés no chão para avisar aos joelhos trêmulos que eu permaneceria firme, chegara até ali e não retrocederia, mesmo que o terror me deixasse em apoplexia e eu só conseguisse movimentar os olhos. O coração batia sincopado e triste, profundamente triste, frente às argolas dependuradas nas paredes e em postes de madeira carcomidos. As mesmas argolas no Museu do Ouro, em Sabará. As argolas dos Flats Senzala, no interior de São Paulo, em Porto de Galinhas, no Rio de Janeiro.
Ali éramos colocados, até que nos conduzissem ao porto de Luanda, à porta do não retorno, ao lugar onde séculos depois construiriam o hotel Continental em que me hospedaram, e eu não tinha ideia de que estava no pedaço de terra de onde me arrancaram, me colocando num barco para atravessar o mar da incerteza, onde tantos de nós morreríamos, no qual muitos de nós seríamos lançados ainda agonizantes.
Meu espírito fugia do corpo, por pouco não tombei. Onde, um lugar de descanso para esse velho coração? Continuar em movimento era o que me alentava.
As perguntas feitas por minha kota estouravam meu cérebro: o sentido de diáspora nos levaria a acolher aqueles que conseguiram evitar a captura em Angola e agora migram para a terra tupiniquim? Haveria, entre nós, um sentimento de irmandade, de coletividade? Onde, nas Áfricas que inventamos, cabem nossos infinitos, nossos sonhos de liberdade?
A imagem mental do quintalão me paralisava, eu precisava exuzilhar aquilo para conseguir mover o corpo outra vez. As respostas não vinham, a kalunga grande não me respondia, a lua e o pôr-do-sol abóbora-iansânico de Luanda também não.
Andei em direção a um terminal de ônibus, pensava em desbravar qualquer bairro para o qual o coletivo me levasse, contudo, não tendo providenciado um chip local para contactar carros de aplicativo em caso de necessidade, resolvi não me arriscar em lugares novos. Eu não tinha telefone, essa era a situação, e então me circunscrevi aos trajetos conhecidos.
As ruas estavam vazias, à exceção do sem-número de guardas e lavadores de carros. Entre as dúzias de trabalhadores que labutavam nas ruas de Luanda e faziam gato do encanamento público para executarem seu trabalho, observei um rapaz que aproveitou o calor e a abundância de água para se banhar, devidamente vestido, enquanto cantava “é devagar, é devagar, é devagar, é devagar, devagarinho”. Perto dele, em local protegido da água que escorria tranquila pelo chão, avistei os tênis surrados e uma pequenina calabaça que atomizou meu sangue. Exu me sorriu, terno, sempre por perto, requerendo atenção para percebê-lo.
Aquela cabaça, a música do Martinho me convidando à desaceleração e aquele jovem negro lutando pela sobrevivência e se limpando da sujeira do mundo foram como uma infusão forte de camomila e espinheira-santa nas minhas entranhas fervilhantes depois do quintalão.
Cidinha da Silva (MG) publicou entre outros livros, os premiados: “Um Exu em Nova York” (Biblioteca Nacional, 2019) e “O mar de Manu” (APCA 2021, melhor livro infantil). Tem dois livros no acervo do PNLD Literário (FNDE), “Os nove pentes d’África” (2020) e “Oh, margem! Reinventa os rios!” (2021). Suas obras integram ainda outras políticas públicas de formação de acervo nas escolas do Brasil. É curadora de Almanaque Exuzilhar (Youtube), conselheira da Casa Sueli Carneiro e doutora em Difusão do Conhecimento.