Inteligência ficou cega de tanta informação?

Crença no valor da ciência não é um fato da natureza

Em 1543, Nicolau Copérnico publicou seu livro “De Revolutionibus Orbium Coelestium” (Da revolução das esferas celestes), apresentando a teoria do modelo heliocêntrico. Galileu Galilei endossou essa perspectiva ousada para aquela época, afirmando que a Terra não era o centro do universo, mas orbitava ao redor do Sol.

A aceitação dessa ideia representou mais do que uma simples revolução científica; foi também uma transgressão contra a ordem estabelecida. Em 1633, Galileu foi condenado por heresia pela Inquisição Romana, uma instituição criada pela Igreja Católica Romana com o objetivo de combater crenças consideradas contrárias à doutrina da igreja. Somente em 1992 a Igreja Católica reconheceu seus erros históricos e, de forma tardia, revogou a condenação de Galileu.

Desde então, muita coisa mudou. O avanço tecnológico permitiu uma expansão sem precedentes na história humana do acesso e da geração de novos conteúdos. Esse acontecimento deu voz a muitos que estavam à margem, abrindo portas para uma ampliação nas possibilidades de compartilhamento de conhecimento.

Galileu Galilei – Wikimedia Commons

No entanto, ao mesmo tempo, o expressivo crescimento do volume de informações trouxe consigo uma série de efeitos colaterais indesejados. Um deles está intimamente ligado à estafa mental. A sobrecarga de informações tende a afetar negativamente a capacidade cognitiva.

A fragmentação de nossa atenção dificulta a concentração em atividades importantes. No meio de tantos conteúdos, identificar aqueles verdadeiramente relevantes tornou-se uma tarefa adicional na rotina diária. Durante o processo de filtragem, é natural perder demasiado tempo com assuntos irrelevantes ou, às vezes, deixar-se levar por uma correnteza de superficialidades.

A cosmologia heliocêntrica de Copérnico nesse diagrama do seu De Revolutionibus – Biblioteca del Congreso de EE.UU.

No passado recente, a geração de conteúdos era marcada por alguns oligopólios. Poucas empresas ditavam o que tinha valor para ser transmitido e moldavam os pensamentos de milhares de mentes submissas. Hoje, embora certos oligopólios ainda permaneçam, os algoritmos exercem grande influência na determinação do que merece ser entregue.

Nesse cenário, é comum presenciar que não é o argumento mais bem fundamentado que avança, mas sim aquele capaz de evocar as maiores reações emocionais. As emoções passaram a exercer um papel mais influente na formação de opiniões do que os próprios fatos. Em parte, isso é um reflexo da nossa maior propensão a consumir conteúdos que validem nossas crenças e, muitas vezes, repelir qualquer perspectiva contraditória.

A revolução digital não apenas transformou a forma como consumimos informações mas também redefiniu a própria essência da influência, dando destaque às emoções que ecoam em cada interação digital. A ilusão em massa sobre aquilo que é verdadeiro levou o sensacionalismo e o populismo a um outro patamar. Ao mesmo tempo, a busca pelo bem comum ficou ainda mais desafiadora com a maior fragmentação da população em distintos grupos.

Nesse contexto, a nossa relação com a informação não apenas se tornou polarizada mas também permeada pela intensidade das emoções, moldando de forma profunda a maneira como percebemos o mundo ao nosso redor.

Em 2016, em um cenário em que a crença pessoal passou a subjugar os fatos objetivos na condução da opinião pública, a palavra pós-verdade foi eleita a palavra do ano pelo Dicionário Oxford. Entretanto, em 1922, Weber já dizia que “a crença no valor da verdade científica é produto de certas civilizações, não um fato da natureza”.

Desde Copérnico e Galilei, a ciência iluminou o caminho do progresso. Contudo, apesar dos avanços, ainda não somos muito diferentes daqueles que promoveram a sombria Inquisição Romana.


O texto é uma homenagem à música “Não Olhe pra Trás“, composta por Alvin L e Dinho Ouro Preto, interpretada por Capital Inicial e Lenine.

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