Todos os dias me deparo com situações que evidenciam a urgência de alçar a questão racial ao centro do debate dos principais problemas do Brasil. Afinal, a raça é fator determinante de tudo neste país tão desigual.
A ponto de o atual presidente da República —um homem de esquerda, de origem popular, que deve em muito a vitória nas eleições de 2022 ao voto das mulheres e dos negros, duas maiorias neste país— se valer de estereótipos ao elencar hipóteses para a presença de uma “jovem afrodescendente” no palco de um evento da área econômica em São Paulo.
Cantora, apreciadora de um batuque —”uma afrodescendente assim gosta de um tambor”, quem sabe namorada de alguém. Foram algumas das hipóteses aventadas pelo presidente, que chegou ao disparate de perguntar se a moça queria namorar com ele. Só não lhe ocorreu de pronto que uma negra estivesse ali pela excelência de seu trabalho, ou seja, pela meritocracia.
Estereótipos são rótulos criados para generalizar. Na década de 1980, a pensadora Lélia Gonzales escreveu artigo intitulado “Racismo e Sexismo na Sociedade Brasileira” no qual afirma que a mulher negra é vista por três perspectivas estereotipadas: a “mulata” (hipersessualizada), a doméstica (para os serviços de limpeza) e a mãe preta (cuidadora).
Tomo a liberdade de acrescentar mais três: a preta raivosa (não engole desaforo), a forte (aguenta o tranco e não se abala) e a guerreira (carrega os fardos da vida). Todas formas de violência e desumanização. Como se a cor da pele tirasse das mulheres negras o direito à fragilidade, à sensibilidade, ao autocuidado, ao senso crítico, à beleza e até ao próprio corpo.
Há quem sustente que o presidente Lula estava ironizando quando se referiu à presença da “afrodescendente”. Pode ser. Mas quando o assunto é grave, não se deve dar a entender o contrário do que se quer dizer. O povo brasileiro merece e precisa ser reconhecido por suas potencialidades, não por estigmas deturpados.