Tocar tambor é um ato de resistência!

No Brasil antes da invasão, já se ouvia os maracás, os sons percutidos nos troncos de madeira, as buzinas, os pés batendo forte no chão ritmando os torés dos índios, os verdadeiros donos dessa terra! 

Após a invasão, ouvia-se os bumbos, as caixas de guerra, as zabumbas, os adufes, todos instrumentos de origem egípcia ou árabe que foram incorporados a Europa por conveniência. 

Daí então desembarca o som do lamento, da dor, da saudade, da esperança e da alegria, pois chegam as terras brasileiras os africanos e seus tambores.  Sabemos que os escravizados não podiam trazer seus instrumentos. Mas incrivelmente eles os recriaram, transformaram, deram forma, pois sabiam que através de sua cultura haveria uma grande oportunidade de manterem vivas suas tradições, de perpetuar e cultuar suas divindades e acima de tudo, seria uma forma libertação.   

Nunca foi fácil tocar os tambores, em todos os períodos da historia do Brasil os tocadores de tambor foram perseguidos, humilhados, marginalizados, tratados com descaso, presos e até mortos.

Nas senzalas nos raros momentos de descanso, eram os tambores, que anunciavam que a África iria resistir, que a cultura não iria morrer, que existia um caminho para não nos esquecermos de nossas origens e esse caminho era a resistência e a manutenção dessa cultura, custe o que custasse. 

Quais teriam sido as impressões dos traficantes de escravos ao ouvirem os primeiros repicar de tambores africanos em suas ditas propriedades no Brasil? Muito espanto, desconfiança e repressão, seguida de permissão estratégica, pois ‘se eles tocarem, terão menor desejo em fugir e se rebelar’. 

Ouvimos historicamente de seguimentos do cristianismo, com a sua perversidade e violência em nome de Deus:  “Estão proibidas as manifestações profanas em terras brasileiras”! 

Nesse momento o silêncio toma conta e a dor aumenta, é tanta dor que não se aguenta e a resistência se apresenta na forma de sincretismo: 

– Vamos celebrar os santos deles, mas na verdade cultuaremos nossos inquices , orixás, voduns! Daí então Santo Antônio virou Ogum! 

– Para animar as festas deles, tocaremos nossos ritmos, pois são mais bonitos e podem alegrá-los. 

– Mas não se esqueçam Santo Antônio é Santo Antônio e Ogum é Ogum.  

Dessa forma os tamboleiros puderam continuar sua missão no Brasil, de forma malandra enganando os patrícios, perpetuaram nossa arte em todo território nacional. 

Ainda assim outras barreiras haviam de se montar, pois a cultura naquele momento tendia a se enraizar e crescer, isso não era bem visto por nossos inquisidores. 

As rodas de capoeira, o tambor de crioula, as rodas de samba, os maracatus, as congadas, os afoxés, os blocos afros, todas essas manifestações brasileiras passaram por dura repressão em diferentes contextos de nossa historia.   Atualmente vemos os terreiros de candomblé serem invadidos e seus instrumentos e imagens quebrados, por marginais, a mando das igrejas neopentecostais, que nos últimos tempos tornaram-se nossa próxima barreira a ser quebrada. Esses, incrivelmente usam nossos ritmos para fortalecer seus cultos. 

Os alabes, batuqueiros, ritmistas, percussionistas, são personagens que representam com suas mãos batendo no couro, os códigos que nos aproximam de nossas heranças culturais. Ao ouvirmos o Ijexá nos remetemos aos iorubas, aos ouvirmos o Congo ou Congo de Ouro, estaremos mais próximos dos Bantus, ao ouvirmos o Savalu nos sentimos Geges, Daometanos.  Podemos afirmar que o Candomblé é o banco da cultura negra no Brasil e por que não dizer, é peça chave na constituição do que chamamos de Cultura Brasileira! 

Apesar de tanta luta, somos ainda incansáveis, colaboramos com os variados grupos de organizações negras no Brasil, estamos nas escolas de samba, nos maracatus, nos afoxés, blocos afros, congadas, grupos de Coco, Ciranda, Carimbó, Jongo, Samba Duro, nas bandas de axé music, pagodão, sertanejo, no chorinho, bossa nova, partido alto. Só na Bahia devemos ter cerca de 10 mil trabalhadores que usam a percussão como forma de sobrevivência. 

Todos sabemos que os percussionistas são tratados com desigualdade na maioria dos grupos incluindo organizações sociais e os que fazem parte do show business brasileiros. Não existem leis especificas do exercício deste trabalho e falta uma melhor consciência entre os administradores desses grupos, principalmente no que tange a real importância desses profissionais na manutenção de seus negócios ligados a cultura. 

Na maioria das vezes somos parte da estrutura social dessas organizações, pois participamos de muitos eventos não remunerados, em escolas, comunidades, sanatórios, presídios, eventos políticos, dentre outros. Esses eventos diretamente não nos trazem retorno financeiro, na verdade ajudam a promover os grupos aos quais pertencemos, isso é uma ação social positiva que seria melhor gerida se recebêssemos os créditos por esses feitos também.  

Mesmo marginalizados, o tambor não parou! Apresenta-se como um verdadeiro ato de resistência, hoje esta disseminado sobre o planeta, eles tocam nossos ritmos e cantam nossas canções na Europa, Ásia, nas Américas, Oceania e incrivelmente até na África. 

Devemos vigiar essa apropriação cultural de perto, mas não devemos coibir, pois a cultura perpetuada jamais será acabada! 

Nossa missão é respeitar a luta desse povo invisível, que arrebentam suas mãos, para que o cosmo possa ouvir e sentir a vibração de seus ritmos, povo guerreiro, incansável que não desistiram e nos presentearam com as maravilhas que fazem parte da musica popular brasileira. 

Salve todos os alabes, batuqueiros, ritmistas, percussionistas, salve nossos mestres!

Tocar tambor é um Ato de Resistência!

 

Por José Mario Bezerra da Silva – Mestre Mario Pam

Professor de Música Licenciado pela UCSal – Percussionista – Compositor – Regente do Ilê Aiyê – Coordenador do Tambores do Mundo – @mestremariopam

 


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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