A Padaria do Moinho negou ter cometido quaisquer irregularidades e disse que cumpre com o previsto na legislação trabalhista. “Jamais houve trabalho análogo a escravidão”, diz trecho da nota divulgada pelo estabelecimento.
A jovem, que no Haiti trabalhou como agente de viagens e modelo, afirmou que não podia ir ao banheiro sem autorização dos superiores, nem manter nenhum tipo de contato com os clientes e colegas de trabalho, além do que era proibida de fazer compras na padaria.
Com base na denúncia feita pela trabalhadora, o Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso (MPT) instaurou um inquérito para investigar a conduta do estabelecimento para com os funcionários.
Najeda contou ter sido demitida dois dias depois de ter concedido uma entrevista a um site de notícias em que comentou sobre o sonho em ser modelo, o que, segundo ela, a motivou a se mudar para o Brasil. A reportagem foi publicada no dia 10 de junho.
“No dia seguinte, quando eu estava na igreja, uma colega de trabalho me mandou uma mensagem dizendo que eu seria demitida por causa da matéria, mas eu não dei importância”, contou.
No domingo, ela estava de folga do trabalho e, na segunda-feira, compareceu normalmente ao local, mas foi impedida de continuar trabalhando, como relatou à equipe do G1.
“Me chamaram no escritório e disseram que eu estava dispensada, pois a conta de luz da padaria estava muito alta. Falaram que dois funcionários iriam assinar como testemunha e que eu seria demitida por justa causa”, explicou.
Najeda se recusou a assinar o documento e decidiu procurar ajuda de um advogado, que a orientou a fazer uma denúncia na Polícia Civil e no MPT-MT. “Ela me ligou desesperada, chorava muito ao contar tudo o que tinha passado”, contou a advogada Ana Maria Affi.
A advogada contou que costumava frequentar a padaria e que, por várias vezes, presenciou situações estranhas que demonstravam a opressão vivida pelos funcionários.
“Eu via o medo nos olhos deles. Certa vez fui abordada por uma das funcionárias. Ela me procurou chorando no estacionamento, pediu meu número e disse que precisava de ajuda”, declarou advogada.
Antes disso, Najeda contou que ficou muito feliz ao ser contratada na padaria e que tudo correu bem durante a primeira semana, mas depois as humilhações começaram a acontecer.
Ela começou a perceber que a rotatividade de funcionários era muito grande, mas achou que talvez fosse normal por causa da diferença cultural. A haitiana afirmou ter suportado as opressões calada por sete meses.
“Tinha medo de perder o emprego, não sabia como ia conseguir me manter em um país diferente, sem minha família”, disse haitiana.
Em sua defesa, a padaria alegou que Najeda foi demitida para cortar despesas e que prova disso é o pagamento de todos os direitos, como de férias proporcionais ao período trabalhado, 13º salário proporcional, os dias trabalhados, pagamento de aviso prévio e o depósito de 40% de multa sobre o montante do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço).
Situação análoga à escravidão
A haitiana também contou que os funcionários precisavam pedir aos chefes sempre que quisessem ir ao banheiro ou tomar água. Também havia um caderno onde o funcionário precisava registrar o horário em que tinha se ausentado. De acordo com Ana Maria, a situação era análoga à escravidão.
“Uma vez pedi ao filho do dono e ele disse que eu não poderia ir [ao banheiro]. E eu não fui. Quando voltei ao caixa, percebi que ele estava rindo de mim. Eu passava horas sem ir ao banheiro”, contou Najeda.
Najeda trabalhava das 11h às 20h. Por isso, passava a maior parte do dia na padaria. De acordo com ela, os funcionários têm direito a um domingo de folga por mês e a uma folga semanal, no caso dela, às quartas-feiras. Mas, segundo ela, a regra nem sempre era seguida.
“Sempre que eu folgava no domingo, na quarta-feira eu não podia tirar folga, tinha que esperar até a próxima semana”, revelou.
Apesar de falar português fluente e fazer curso de língua portuguesa e cultura brasileira, os haitianos são obrigados a usar um crachá que diz que não falam o idioma.
“É uma forma de fazer com que eles não mantenham contato com nenhum cliente. Fazer com que ela use esse crachá, sabendo que ela fala perfeitamente o idioma, é assédio moral”, explicou Ana Maria.
A empresa disse, em nota, que havia a necessidade de avisar sobre a saída do posto de trabalho para as necessidades fisiológicas porque Najeda era operadora de caixa. “(Ela) trabalhava como operadora de caixa, mexendo diretamente com dinheiro, e por isso sempre que precisava se ausentar do check-out, avisava a fiscal de caixa para que a mesma cuidasse de seu check-out. Todas as operadoras de caixa de todo o comércio em geral tem que realizar este procedimento, uma vez que ali se encontra dinheiro”, alegou.
Sobre o uso do crachá contendo a informação de que não fala português, a administração da padaria alegou que, inicialmente, Najeda usava o aviso, mas que depois teve o crachá substituído por outro sem o comunicado. “Devido à dificuldade de os clientes em se comunicarem com os funcionários estrangeiros, os clientes sugeriram à loja que, a exemplo de outras empresas, que os identifiquemos com um aviso da dificuldade da comunicação de língua estrangeira”, pontuou.
A empresa negou regime de escravidão e alegou que os funcionários trabalham 8 horas por dia, com uma hora de intervalo.
Monitoramento
Sempre que Najeda e os outros funcionários descumpriam as normas, uma foto era tirada e eles eram obrigados a assinarem advertência, segundo a trabalhadora.
Ela explicou que o estabelecimento monitora os funcionários constantemente. As câmeras de segurança estão presentes até mesmo no vestiário, onde as funcionárias precisam se trocar todos os dias.
Sem privacidade
O vestiário fica nos fundos da padaria e, segundo Ana Maria, é possível comparar o local com a casa grande [dos coronéis] e a senzala [dos escravos] da época da escravidão.
“O ambiente de trabalho deve ser pautado pelo respeito mútuo. Ser subordinado não significa estar em situação moral inferior. No caso de Najeda, ela experimentou inegavelmente as consequências do tratamento desrespeitoso e agressivo”, explicou a advogada.
Os funcionários também não podem fazer compras no estabelecimento. “Para comprar qualquer coisa lá só dando dinheiro ou meu cartão para alguém comprar para mim. Eu não podia passar pelo caixa e fazer a compra”, contou.
Em nota, a empresa negou proibir os funcionários de conversarem entre si. “Com os colegas em serviço e com a cordialidade natural de se cumprimentarem, sempre foi permitido. Com clientes de forma natural, que é a base do comércio e do atendimento, também sempre lhes foi permitido”.
Além dos casos de assédio moral, Najeda também disse ter sido vítima de preconceito por parte dos donos do estabelecimento. Uma vez disse ter sido obrigada a retirar um aplique que tinha colocado no cabelo.
“Eles disseram que a padaria não era carnaval. Eu pedi desculpas e tirei o aplique”, lembrou trabalhadora.
Em outra ocasião, a gerente do estabelecimento pediu que outra funcionária a dissesse que cheirava mal.
“Nesse dia eu fiquei muito triste, foi muito constrangedor. Eu cheguei em casa e não parava de chorar”, contou Najeda.
Conforme a advogada, a situação lhe causou prejuízos emocionais e afetou a sua autoestima. Ela tem crises de pânico e sempre chorava ao relembrar de tudo que passou.
“Ao fazer isso eles oprimiram a cultura dela. Usar tranças e apliques faz parte da cultura de seu povo. É inconcebível que isso aconteça após 129 anos da abolição da escravidão”, explicou.
A emprega confirmou ter pedido que Najeda retirasse o aplique e alegou que seria por questões de higiene. “Uma padaria que trabalha o tempo todo com clientes comprando pães, doces, tortas e salgados, os cabelos de todas as funcionárias por exigência da vigilância sanitária, tem que estarem presos com um coque e uma xuxinha. Ao colocar um aplique muito comprido fica impossibilitada de prender os cabelos, conforme esta exigência da Vigilância Sanitária”, argumentou.
TAC
O MPT informou que uma das denúncias quanto à jornada de trabalho resultou em um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), por meio do qual a empresa se comprometeu a garantir equipamento de proteção aos funcionários, descanso semanal de 24 horas, intervalo e a não prorrogar a jornada normal de 8 horas diárias para além das duas horas permitidas por lei.
Carga horária excessiva
De acordo com Najeda, outros funcionários passaram por situações semelhantes. Alguns funcionários chegam a trabalhar mais de 10 horas por dia.
Ela lembra de uma funcionária, também haitiana, que estava grávida de nove meses e foi trabalhar mesmo se sentindo mal, pois, de acordo com ela, as punições quanto às faltas são severas.
“A bolsa dela estourou enquanto ela trabalhava e ninguém se importou. Ela quase teve o filho na padaria. A gerente disse que, assim que ela acabasse o trabalho, poderia ir para casa”, lembrou.
A empresa nega que os funcionários extrapolem a jornada.
Orientação
O presidente da Associação de Defesa dos Haitianos Migrantes em Mato Grosso (ADHM-MT), Clercius Monestine, orienta os trabalhadores haitianos a não assinarem contratos sem ter total conhecimento das regras nele propostas pela empresa.
“Esses contratos deveriam ser confeccionados em francês ou em inglês para que os haitianos pudessem entender com mais facilidade. Minha segunda orientação é que eles sempre procurem seus direitos na Justiça”, disse.