“Na minha aldeia mora uma cabocla, eu não sei se é homem ou se ela é mulher, é uma cabocla índia da pele morena, mora na aldeia de Tapinaré.” É deste cântico que vem o nome do Coletivo Caboclas, fundado por Yaquecan Potyguara e Kaypora Potyguara Guarani. Está voltado para discussões, reflexões e vivências de gênero e sexualidade entre grupos indígenas a partir da região do Ceará. Com este cântico adentramos na reflexão que o 8 de Março exige. Afinal, que reivindicações nos atravessam, ou deveriam, numa data internacional voltada aos direitos das mulheres? De que mulheres estamos falando e com qual objetivo?
Não é preciso grande esforço para identificar o esvaziamento do sentido de luta da data mundialmente celebrada hoje. Quantas vezes já recebemos parabéns e flores e isso em nada impediu que violências continuassem a ser perpetradas nesse mesmo dia? O motivo da data não tem nada a ver com presentes, mas sobre os significados atribuídos socialmente às mulheres. E pensar sobre mulheres exige que o façamos deixando a universalidade de lado, pois ela só escamoteia o tanto de eixos de opressão que perpassa nossos corpos-territórios de mulheres, no plural. Afinal, onde estão as mulheres indígenas, negras e trans quando falamos em Dia Internacional das Mulheres?
Convido vocês a refletirem sobre mulheres que também devem ser ouvidas, hoje e sempre. Sigamos o fio questionando o que possibilita que negras e indígenas possam emergir como sujeitas políticas? O que segue em disputa e nos permite observar que referir “Mulheres” não significa naturalmente incorporar todas as mulheres.
Mulheres indígenas e negras em movimento
Sueli Carneiro, importante pensadora negra brasileira, em “Mulheres em movimento” afirma que o movimento de mulheres no Brasil é “um dos mais respeitados do mundo e referência fundamental em certos temas do interesse das mulheres no plano internacional”. Mas atenta para o fato de que não é apenas o sexismo que oprime as mulheres, há que se considerar também a raça. O reconhecimento de demandas específicas a partir do lugar de mulheres negras e indígenas nos permite observar como elas se tornaram sujeitas políticas.
O ponto de unidade entre experiências diversas – negras e indígenas – está na capacidade de formular demandas a partir de suas experiências coletivas, ressaltando que intragrupo a pluralidade também se mantém, mas é incapaz de barrar as exclusões que operam a partir da lógica colonial e assim, às expõe à opressões comuns, o que não às exime de também articular resistências comuns.
Sueli Carneiro destaca que “grupos de mulheres indígenas e grupos de mulheres negras, por exemplo, possuem demandas específicas que, essencialmente, não podem ser tratadas, exclusivamente, sob a rubrica da questão de gênero se esta não levar em conta as especificidades que definem o ser mulher neste e naquele caso”.
Os anos 1970 viram os movimentos sociais negros e indígenas emergir no cenário nacional enquanto sujeitos políticos. As mulheres negras e indígenas passam a discutir questões vinculadas à especificidade de ser mulher negra ou indígena dentro desses espaços no mesmo período, e na década seguinte a autonomia se torna uma constante.
A entidade Maria Mulher, de Porto Alegre, o Instituto Geledés, de São Paulo, a ONG Criola, do Rio, foram criadas respectivamente em 1987, 1988 e 1993, e representam uma parte pequena do que é o chamado Movimento de Mulheres Negras Brasileiro, o qual se articula internacionalmente. Tal articulação evidencia muitas das demandas dessas sujeitas políticas, viabilizadas por conta de conjunturas políticas articuladas com demandas intragrupo e com a ênfase em resistir e resguardar suas existências.
Destaca-se a atuação de lideranças como Luiza Bairros, mulher negra gaúcha pensadora e ativista, junto a Comissão Mista Parlamentar de Inquérito acerca da esterilização em massa, que atingia sobretudo mulheres negras, e que era então presidida pela deputada federal pelo RJ Benedita da Silva, também uma mulher negra.
A discussão acerca de direitos reprodutivos que extrapolam em muito o tema do aborto, por exemplo, é pauta comum às mulheres negras, como destaca a pesquisadora Emanuelle Góes, e foi fundamental para que entrasse em vigor no último domingo (5) a Lei 14.443/2022 que altera as exigências para a realização de laqueaduras e vasectomias no âmbito do planejamento familiar.
Já as discussões acerca do mercado de trabalho e educação foram fundamentais para que as cotas em ambos os espaços fossem aplicadas. Os avanços são nítidos, mas não se perde de vista o que ainda contribui para a subalternização das mulheres negras, como a violência em todos seus níveis, aos moldes do que destaca a pesquisadora negra gaúcha Suelen Aires, em estudo recentemente divulgado sobre “Vidas matáveis: Feminicídios de mulheres negras e interseccionalidades de gênero, raça e classe”.
Indígenas mulheres, por seu turno, têm por meio de organizações como Associação de Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro, de 1984, Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo, de 1994, pautado a discussão sobre emergência climática e violência, com ênfase a invasão de territórios, que atingem também os corpos das mulheres, por isso a referência a corpo-território.
Reivindicação das mais contemporâneas e disseminada pelos territórios indígenas, como observado na tragédia Yanomami e na greve de fome da cacica Gah Té Nascimento Kaingang, de Porto Alegre, buscando reverter a reapropriação da terra indígena Kaingang, no final do ano passado. As lutas por participação política para além do legislativo e nas discussões acerca da saúde e racismo ambiental foram centrais nas discussões de mulheres indígenas durante o último Acampamento Terra Livre, realizado em Brasília em abril de 2022, como é possível acompanhar também na discussão proposta pela liderança Célia Xakriabá, deputada federal por Minas Gerais, que no último sábado (4) foi vítima de racismo na cidade de Ouro Preto (MG).
E, não menos importante, esses dois grupos têm alertado para as discussões acerca da sexualidade protagonizado por pessoas LGBTQIAPN+, aos moldes do que é discutido pelo Coletivo Cacicas, mas que também perpassa lideranças negras como abordado por Maria Clara Araújo e Letícia Nascimento acerca de travestilidades e transfeminismos negros.
Cada uma dessas discussões deságua em muitas outras. Esperamos que elas tenham feito com que quem nos lê possa refletir, ouvir e agir em prol do fim dessas opressões, mas que possa também conferir ouvidos e olhos para as tantas experiências de existências que mulheres indígenas e negras, LBTQIAPN+ ou não, têm compartilhado que em muito contribuirão para que a democracia sem racismos se efetive. Mulheres essas que, inclusive, têm fortalecido um projeto de presença a partir de suas existências assentada na referência ao turbante e ao cocar que protege nossas cabeças e nos vincula às nossas ancestrais, que também lutaram para que possamos ser mulheres em toda nossa plenitude.