Saraus, Projeto Cine Viela e biblioteca comunitária com o seu nome.
Mestrado no Chile, literatura marginal, feminina, negra, Carolina.
Jesus, o mesmo sobrenome da minha família materna, da minha mãe, figura de admiração e semelhança com a sua história de luta, sofrimento, de coragem.
por Fernanda Oliveira Matos via Guest Post para o Portal Geledés
Medo, rejeição, medo, insegurança, medo, isto não e literatura, isto não e literatura Fernanda. Peraê, mas o que é literatura então? Se não dialoga com a vida, com o ser humano, se não é esta que fica no tempo e no espaço? O que é literatura então? Ok, então a qual gênero textual pertence? O que são os gêneros? Quem os determina e legitima? Por quê?
Pode ser testemunho, autobiografia, mas não é literatura. Ok, não importa como o definam é sobre este mesmo que quero e vou trabalhar…
É literatura profe, é Carodivina. De vida. De Carolina Maria de Jesus. Nunca ouvia falar dela?
Estas ideias soltas definem grosso modo meus primeiros contatos com a sua obra Carolina e a resistência que enfrento para poder analisá-la. Afinal falar sobre oprimido como você fez e nas suas condições de mulher, negra e pobre causou e tem causado impacto; muito mais do que você imagina. O que cumpre a sua vontade quando dizia que as suas letras jamais seriam apagadas. Nunca foram, nunca serão.
Sua literatura é tão viva, é tão contemporânea, tão impactante, é um tapa na cara constante no nosso comodismo. Fique tranquila, pois você ainda tem tirado muita gente da sua zona de conforto. Da minha então nem se fala…
Neste diálogo contigo vou mencionar algumas polêmicas que envolvem a sua obra dialogando com a minha experiência em relação a elas. São apenas reflexões um tanto vagas, minha intenção aqui não é aprofundá-las, nem seria possível. Quem sabe possa ir ao encontro de algum semelhante que também está lutando para se encontrar, se posicionar no mundo.
Bom, vamos lá. Primeiramente comentemos o que se refere à definição do gênero textual e características dos seus livros.
Por que essa mania de etiquetar tudo né? Tenho uma sensação ambígua a respeito. Se você não dá nome às coisas elas parecem não existir, ou na homogeneidade de outras afins perdem o seu valor peculiar. Por outro lado, ao enquadrar muito um gênero, um estilo, não seria minimizar o seu potencial literário?
Quando digo nisso, penso nos conceitos e discussões sobre literatura afro-americana, afro-brasileira, africana, marginal, de testemunho, memorialística e tantos outros términos que por ai surgem, nos quais a inclusão dos seus textos são polêmicas e variadas, dependendo de QUEM os legitima. Como sempre…
No mais, sua obra sempre causou e causa sensações de estranhamento e admiração em relação ao desconhecido.
Sim, o desconhecido. Este que é uma ameaça aos padrões pré-estabelecidos. Questionamentos de literatura e gêneros textuais linguagens e recursos textuais adotados não são bem-vindos quando não estão pré-legitimados por alguém e você sabe bem o que isso representa, pois lutou contra um mercado literário ideológico que se recusava a inseri-la nos seus circuitos intelectuais. E não podia ser diferente não é mesmo? Você representava uma ameaça ao poder político. Desta forma, alguém editava e publicava para você, organizando as ideias e projetando-a no mercado editorial, mas quiseram manipulá-la como um ventríloquo e você mesma disse que se recusava a isso.
O que poucos reconhecem deste feito é que esta intervenção extraliterária acontecia de maneira controlada, ou seja, seus editores não escreviam para você ou recopilavam o que diziam. Digo isso porque conversando um dia com uma das maiores pesquisadoras sobre o gênero testemunho na América Latina, Elzbieta Sklodowska, ela me comentava que você era a primeira mulher a escrever testemunho de autoria própria neste continente, o que me surpreendeu muito porque os nomes mais destacados desse gênero são da guatemalteca Rigoberta Menchú em um primeiro momento e a boliviana Diomitila Chungara, mas os casos delas são bem diferentes do seu porque foram recopilados e editados; dai o seu pioneirismo.
Sobre este ponto eu penso duas coisas. A primeira em relação ao gênero textual que escrevia. Considerações à parte sobre a interferência dos editores, e centrando-me nas narrativas de algumas obras suas. Quarto de despejo, Casa de Alvenaria e Diário de Bitita apresentam uma diversidade de gêneros textuais que ultrapassam os limites estabelecidos para a autobiografia, o diário ou o testemunho, principalmente no que refere à identidade do autor-personagem, a denúncia e linguagem visceral dos escritos e a busca de legitimação autoral.
Sobre este tema me respaldo em teóricos como Philippe Lejeune e John Berveley, para não dizer que não falei de teoria né Carol? Você sabe bem como se autolegitimar, e ainda que muitos acreditem que é produto da sua inocência e falta de consciência crítica, a bajulação e posicionamentos contraditórios em relação a ideologias sócio-políticas não foram mais que estratégias de afirmação e sobrevivência. Dessa forma, como admiradora sua e com a necessidade de afirmar-me aqui também como afrodescendente, oriunda da favela e mulher, eu não podia deixar de apropriar-me dessa estratégia sua.
O segundo ponto é sobre a recepção da sua literatura no Brasil. Além das sensações de estranhamento e admiração causadas, há uma tendência de esgotá-la na academia e apagá-la nos meios públicos. Explico-me. Ao decidir pesquisar sobre você, notei uma gama muito variada de estudos que circulavam nos meios acadêmicos, no entanto, nenhum dos meus amigos (considerando que sou da periferia de São Paulo e que tenho contatos com pessoas com variados graus de instrução), a conheciam, nem sequer tinham ideia do que foi a riqueza das suas peripécias literárias. Contraditório não?
Para a primeira mulher negra, pobre e com pouca instrução que dedicou sua vida aos filhos e as letras? Isso porque nem menciono a Maria Firmina dois Reis com a magnífica obra Úrsula, essa ainda é menos conhecida. É que sobre os malefícios da modernidade tão pulsantes e latentes são contigo mesmo.
Parece que estavam todos muito ocupados em continuar reproduzindo o olhar e a influência estrangeira, branca, de boa situação econômica e alto nível de escolaridade.
Fernanda, mas muitos autores retrataram a figura do oprimido seja do sertanejo, do negro, da mulher etc. Ok, obras louváveis, referências sempre, mas terá o mesmo olhar aquele que fala sobre a fome e aquele que passa fome? Você já bem o disse quando afirmava que somente aquele que conhece a fome é que poderia descrevê-la.
Bom, também não posso deixar de mencionar o surgimento de movimentos periféricos literários que as resgataram (e foi por um deles que a conheci não na faculdade de letras); as iniciativas de organizar antologias de escritores afrodescendentes, os inúmeros grupos de pesquisa. O gigante está acordando e precisamos levá-lo para passear por todos os cantinhos do mundo, principalmente do nosso Brasil e me refiro às inúmeras Carolinas e Carolinos que estão produzindo arte por ai. Bora expor, dialogar, criticar o que foi feito e está sendo feito. Dai a importância de iniciativas como estas aqui.
O terceiro e não menos importante é sobre o objeto de estudo que com muito sacrifício estou analisando aqui no mestrado. Diário de Bitita e as representações do sujeito feminino negro.
Primeiramente breves considerações sobre o motivo da escolha de Diário de Bitita. Notei que esta obra não era tão analisada como as demais, e que por muitas vezes fora minimizada por questionamentos de veracidade e interferências das editoras, duas jornalistas francesas. Ora quem acompanhou a sua história, leu os seus livros e críticas, pode perceber o quanto você se preocupou em aperfeiçoar a sua escrita, o quanto amava as letras, os livros, a criação literária.
Considero Diário de Bitita a obra que revela a verdadeira face da escritora Carolina Maria de Jesus. Que na busca pela paz, vencida pelo cansaço para conseguir tranquilidade e afirmar-se como escritora, com a tristeza de ver-se novamente pobre, lança a sua última cartada de permanência no circuito literário: a sua autobiografia.
Este texto nos entrega um sujeito feminino todo especial que procura destacar a sua capacidade intelectual que se sobressai do resto. Vejamos uma possível categoria de interpretação sobre a menina Bitita e a adulta Carolina de Jesus.
Ainda que Bitita seja você conversando conosco, explicando como nasceu essa fome insaciável pelo saber e legitimando seu talento literário pela linhagem genealógica do bohemismo do pai e do socratismo africano do avô; ela ganha vida e se desprende do seu relato atuando como um ser cuja capacidade crítica e consciência étnica e social são espantosas. Isso a faz desejar ardentemente ser homem, representado na linguagem pueril de passar por debaixo do arco-íris. Ah, de infantil Bitita não tinha nada né Carol? Era só um jogo de linguagem para que pensássemos que fosse uma criança, mas nenhuma criança faria as analogias que Bitita fazia; você a resgatou ai dentro e se apropriou dela para falar o que queria já que se recusavam a te escutar.
O que me chama atenção é a vontade enorme de ser homem. Ora ser homem era (?) sinal de supremacia e se fosse branco ainda melhor; pois como condição para dupla exclusão, ser mulher já envolvia um histórico de luta pela conquista por acesso aos espaços públicos. Ser mulher negra, ainda pior, pois enquanto as feministas brancas gritavam por independência, estas continuavam em regimes de “escravidão” sexual, abuso da forca de trabalho, sendo inferiorizadas e interiorizando estereótipos e preconceitos de toda espécie.
Bitita então teve que se conformar com o que era uma criança negra e pobre, o que não a impedia de crescer confrontando aos homens, questionando a sua falsa superioridade, apresentando o seu grupo familiar e denunciando as relações de opressor e oprimido dentro dos âmbitos de gênero, raça e classe social. No entanto, quando na escola a chamam pelo seu verdadeiro nome Carolina Maria de Jesus, há um momento epifânico dos mais belos, estilo Clarice Lispector, que marcam a transição para a fase adulta.
Na fase adulta, você teve que abandonar a escola e com muita dor abandona aos livros, o seu maior tesouro. Tem que deixar a sua cidadezinha de Sacramento, para “ganhar a vida” se é que isso representa as doenças, a exploração de trabalho e as humilhações pelas quais teve que passar. Já é um pouco da Carolina de Quarto de Despejo, crescer significou trabalhar duro e sofrer como cão, por isso é que você morreu na infância escondidinha no seu sítio em Parelheiros, resgatando suas memórias, sozinhas com as suas lembranças. Ali mesmo sendo tachada de feia, louca e atrevida tinha o peito da mamãe, os ensinamentos do vovô as comidas gostosas das dindas.
Ainda há muito por discutir ai, por reivindicar teorias e/ou valorização das já existentes que enfoquem o sujeito feminino negro no Brasil. Ainda estou te descobrindo e adoro pensar que sempre me traz algo novo.
E é encorajada pela tua ousadia que me permiti neologismos, este pseudoensaio, sem referências, nem mil citações e notas de rodapé, pois eu já tenho que fazer tudo isso para poder jogar o jogo das academias de ter um lugarzinho ao sol nas esferas da crítica literária, ter algum status e conseguir me manter, viver “bem”; mas você bem sabe que a resistência é forte e falar de mulher e negra não é muito bem visto em determinadas circunstâncias.
De qualquer forma, é um prazer conversar contigo, sempre, afinal me apego a você e todas as referências de bravas mulheres que a tua literatura me despertou, a começar pela minha mãe Elisete Oliveira de Jesus, essa sempre foi e nunca deixará de ser.
Espero que o teu grito também possa ecoar e guiar a outras pessoas, a outras mulheres que estão em busca constante de autoconhecimento, orientação e projeção no mundo. Viver é isso ai e que lindo é.
Que o sol, o astro rei como você dizia, venha brilhar para todas e que possamos socializar ideias e produzir nossas artes e encontrar um lugar em que possamos florescer.
Um axé, um salve e viva a sua literatura e a todas as bravas mulheres que na labuta diária marcam existência!
Fernanda Oliveira Matos
Magíster © en Literatura
Universidad de Chile
Profesora de portugués/español como lengua extranjera