Por muito tempo, o continente africano foi visto, na menos pior das hipóteses, como um lugar exótico. Visão que foi amplamente difundida por Portugal, que, durante um longo período, teve o monopólio sobre alguns países africanos. Esse modo ocidental de entender a África contribuiu para que, ainda hoje, o discurso das “’estranhezas’ africanas” seja, erroneamente, reproduzido. Discurso este que se centraliza em classificar o africano por meio de estereótipos, desprezando, desse modo, a constituição do “homem humano”, termo tomado emprestado de Guimarães Rosa.
Desde janeiro de 2003, quando entrou em vigor a lei nº 10.639, que torna obrigatório o ensino de Literatura, História e Culturas Africanas e Afro-Brasileiras nas escolas do Brasil, aumentou, significativamente, o número de pessoas que – estudiosas de Literaturas ou não – começou a nutrir certa curiosidade sobre essas Literaturas. Ainda bem que, para auxiliar aos curiosos, temos pesquisadores – como a Professora Doutora Laura Padilha- que, há muito tempo, vêm direcionando seus olhares para as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, produzidas em: Moçambique, Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné Bissau.Se, em consonância com Todorov, considerarmos que “o objeto da Literatura é a própria condição humana, aquele que a lê e a compreende se tornará não um especialista em análise literária, mas um conhecedor do ser humano”, podemos dizer que esse movimento que fazemos em direção à Literatura Africana, é um movimento que tem, em sua base, o intento de conhecer o outro, deixar que o outro, silenciado por diversas formas de violência, mostre-se, apresente-se a nós.
Essa proposta de abertura para o diálogo com as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, implica a nossa tomada de consciência acerca de algumas características norteadoras dessas literaturas, como, por exemplo, a preocupação de muitos escritores africanos em inscreverem, no texto, por meio do uso da Oralidade na Escrita, pistas que nos remetam à reivindicação de uma identidade cultural por parte dos países desse continente. Ancoradas nessa proposta, podemos destacar, dentre outras, as obras: “O regresso do morto”, do moçambicano Suleiman Cassamo e “Luuanda”, do escritor José Luandino Vieira, que nasceu em Portugal, mas passou boa parte de sua vida – como preso político, inclusive, por engajar-se na Luta pela Independência – em Angola.
Nas obras supracitadas, o engendramento estético pautado pelo uso da Oralidade, utilizado pelos seus escritores, faz com que mais do que falar sobre as personagens, os escritores possam mostrá-las, conferindo, desse modo, um caráter performático aos textos literários em questão.
É importante salientar que essa opção dos escritores pela inserção da Oralidade em suas obras, corresponde, conforme postula J. Vansina, “a uma atitude diante da realidade, e não a ausência de uma habilidade”. Percebemos, assim, em muitos textos, a demonstração de um sentimento de Pertencimento à África.
Nessa perspectiva, podemos entender a opção estética de muitos desses autores, ao articularem a escrita de suas obras em uma perspectiva de uma “Literatura Menor”, que, segundo DELEUZE & GUATARI é aquela que uma minoria faz em uma língua maior. Isto é, o escritor africano utiliza a língua do colonizador, a Língua Portuguesa, para externar a sua maneira de pensar, inscrevendo, no texto, pistas que remontam à identidade cultural híbrida do seu país e, por extensão, do continente Africano.
Assim, como postula Laura Padilha, ao mesmo tempo em que esses escritores intensificavam a busca de um processo revolucionário, de um lado, que visava à preservação das línguas nacionais, assegurando-lhes espaços concretos de fala, também se fazia necessário operacionalizar meios que garantissem um domínio mais eficaz da língua da colonização, base da expressão literária que visava ao atingimento dos dois públicos. O plurilinguísmo dessa literatura parece revelar o movimento nos dois sentidos, ou seja, na busca da originalidade da cultura autóctone e na manutenção da língua da colonização, marca da presença cultural do outro. Disso resulta um “entrelugar”.
Esse “entrelugar” é, muitas vezes, propiciado pelo fato de a morte ser apresentada, nas Literaturas Africanas, na perspectiva de um estreito diálogo com a vida, no qual muitas personagens estão mortas, ou, nas palavras de Mia Couto, “vivas de outra maneira”. Esse é o caso de a narradora do conto “A casa dos mastros” (que foi publicado na obra homônima), da escritora caboverdiana Orlanda Amarílis, no qual temos a presença de uma narradora morta cujas memórias são reterritorializadas nas memórias de uma protagonista viva. No contexto da cultura caboverdiana apresentado no conto, esse diálogo entre morte e vida assume um viés crítico, uma vez que, por meio dele, uma narradora morta recupera memórias de sua vida intercalando-as com a trágica história da protagonista, Violete, para promover uma crítica da sociedade caboverdiana tradicional e pós-colonial.
Situações como esta, abordada pelo conto de Orlanda Amarílis, a presentificação da morte em obras das Literaturas Africanas, são sustentadas pelo conceito de Ancestralidade, que, para Laura Padilha é “a essência de uma visão que os teóricos das culturas africanas chamam de visão negro-africana do mundo. Tal força faz com que os vivos, os mortos, o natural e o sobrenatural, os elementos cósmicos e os sociais interajam, formando os elos de uma mesma e indissolúvel cadeia significativa […] Intermediando o vivo e o morto, bem como as forças naturais e as do sagrado, estão as dos ancestrais, ou seja, os antepassados que são ‘o caminho para superar a contradição que a descontinuidade da existência humana comporta e que a morte revela brutalmente.”
Amparado por essa concepção cultural africana, temos, também, o destaque que os velhos têm na sociedade Africana. Eles são vistos como detentores do conhecimento, o que lhes conferia, nas sociedades tradicionais, um respeito muito grande, uma vez que eles detinham os costumes e as crenças que simbolizavam a tradição do grupo. Cabia aos velhos passarem esse conhecimento para os mais novos.
Esse tema é abordado no conto “Pai Zé Canoa Miúdo no Mar” (presente no livro “O fogo da fala”), do angolano Boaventura Cardoso, no qual o avô leva seu neto para pescar, e acaba falecendo. Em um primeiro momento, pode-se pensar na morte do avô como a morte da tradição. Entretanto, se fizermos uma leitura mais atenta, poderemos depreender do conto a sugestão da perpetuação da tradição por um viés de renovação. Tal sugestão pode estar evidenciada pelo fato de o avô levar o neto consigo para o mar e mostrar-lhe a profissão que lhes garantia sustento, ou seja, iniciá-lo no mundo da pesca, ensiná-lo a fazer algo recorrente na comunidade retratada no conto. Desse modo, o lugar do neto, no conto, parece ser o da renovação da memória africana.
A reflexão sobre o papel velhos nas sociedades tradicionais africanas, pautada pela noção de Ancestralidade, está presente, também, em “A Varanda do Frangipani”, de Mia Couto, renomado escritor moçambicano, que também é autor dos já consagrados: “Cada homem é uma raça”, livro de contos, e “Terra Sonâmbula”, que em 2007, foi adaptado para o Cinema.
Termino este post salientando a impossibilidade de se encerrar o muito que ainda temos a conhecer – e dizer – sobre as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. E julgo importante deixar a sugestão de não cairmos no simplismo de minimizar tais literaturas, porque, como afirma Inocência Mata, nascida em São Tomé e Príncipe, e incansável pesquisadora das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, “quando se pensa que basta ler cinco livros, basta conhecer os escritores, basta ser amiga deles para ser ‘especialista’, torna a área ‘menor’, porque a folcloriza”. Por isso, adotemos, sempre, perante as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, a postura de insaciáveis, pautando-nos pelo mesmo princípio de Mia Couto, o de que, “África rouba-nos o ser. E nos vaza de maneira inversa: enchendo-nos de alma”.
Sobre Cleonice Machado: Sou mestranda em Literaturas de Língua Portuguesa, com ênfase em Literaturas Africanas. Acredito que isso seja informação demais. Para o caso de não ser uma overdose de informações, sou, também, apaixonada por Futebol e Política. Quando não estou no Mineirão, assistindo aos jogos do Clube Atlético Mineiro, ou nas ruas, militando, sou professora de Literatura. Mas, sem ingerir quantidades cavalares de café, “não sou nada, nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.
Fonte: Meia Palavra