As pessoas com 70 anos ou mais nos distritos mais pobres foram, proporcionalmente, menos vacinados contra a Covid até o momento na cidade de São Paulo. É nessas áreas que a mortalidade pela doença é maior e, por isso, mais urgente a imunização.
Levantamento feito pela Folha considerou a proporção de imunizados nessa faixa etária em relação a essa mesma população em cada distrito da capital até o último dia 29.
Nos 10 distritos com mais mortes de idosos por Covid, todos com IDH (índice de desenvolvimento humano) dos mais baixos do município, foram vacinados com a primeira dose, em média, 58% dos residentes nessas faixa etária.
São locais como São Miguel e Guaianases, no extremo leste da capital. A cada mil idosos que moram nesses distritos, 33 morreram de Covid.
Já nos 10 distritos com menor mortalidade, dos quais 8 têm IDH muito alto (acima de 0,8), 75% dos idosos residentes foram imunizados com a primeira dose. Em Pinheiros (zona oeste), onde a vacinação para esse público atinge o índice de 91%, o mais alto da cidade, a taxa de mortes é de 14 a cada mil habitantes idosos.
As taxas de mortalidade consideram os óbitos desde o inicio da pandemia, em março de 2020, e o menor número de mortes nos distritos mais ricos não está ligado à imunização —ainda recente e cujos efeitos devem começar a aparecer nas próximas semanas.
Os dados são do Ministério da Saúde, tabulados pela Folha. As estimativas populacionais são da Fundação Seade, do governo paulista.
Para médicos consultados pela reportagem, a dificuldade de acesso aos serviços de saúde e à informação sobre como tomar o imunizante pode atrasar a vacinação nos distritos periféricos, mesmo havendo doses disponíveis.
Também podem estar faltando informações sobre a segurança dos imunizantes, dizem esses especialistas.
A gestão do prefeito Bruno Covas (PSDB) afirma que a cidade possui sistema capilarizado para a vacinação e que é na periferia que se concentra a maior parte das equipes do programa Saúde da Família.
O local com menor vacinação até agora é o distrito de Pedreira, na zona sul, onde 36% dos moradores com 70 anos ou mais foram imunizados.
No último dia 24, uma unidade de saúde da região foi assaltada. Quase 100 doses de vacina foram roubadas, deixando o posto desabastecido.
Adriana Pereira, conselheira do Movimento Popular de Saúde de Cidade Ademar e Pedreira, diz que há pouca divulgação do calendário de vacinação, o que tem confundido muitos idosos.
Ela conta que o movimento ampliou a campanha em redes sociais e nas unidades de saúde, mas ainda há pouca procura. Um dos problemas, diz, é que há idosos que precisam de auxílio para chegar ao posto de vacinação, mas moram sozinhos ou os familiares precisam sair para trabalhar.
Outro ponto é a falta de acesso às informações sobre o andamento da vacinação, o que atrapalha o planejamento de ações e a cobrança.
“Faltam informações de quantas vacinas foram aplicadas na região, quantas são 1ª e 2ª dose, quantas vacinas temos diariamente para aplicar, quantos idosos tomaram”, diz.
Para o médico sanitarista Jorge Kayano, pesquisador do Instituto Pólis, a desigualdade na vacinação pode reduzir a eficácia do plano de imunização e retardar a redução de casos e mortes.
Ele defende que as áreas mais afetadas sejam priorizadas, pois ampliar a vacinação nos locais onde o vírus mais circula, pode ser importante para reduzir mais rapidamente a disseminação da doença em geral.
“A população de alguns distritos paga um preço mais caro na pandemia. Aumentando a proteção onde há mais gente morrendo, de forma indireta você protege toda a cidade.”
É nas periferias que reside a maior parte dos trabalhadores informais e que precisam se expor diariamente aos riscos de contaminação. “São essas as pessoas que circulam, que usam o transporte coletivo e acabam levando o vírus tanto para onde trabalham quanto para casa”, afirma Kayano.
Uma das questões que pode estar retardando a vacinação nas zonas pobres, diz Amanda Arlete Ribeiro Firmino, vice-presidente da Associação Paulista de Medicina de Família e Comunidade, é o acesso aos equipamentos de saúde.
“A unidade de saúde às vezes é distante, e o idoso não tem carro, tem dificuldade maior de locomoção, não consegue alguém que ajude a chegar ao local porque a família tem que trabalhar. O idoso mais periférico fica um pouco mais abandonado.”
Para essas pessoas, ela lembra, o problema do acesso aos serviços de saúde não afeta apenas a vacinação. Se reflete no descontrole das comorbidades e na demora para conseguir atendimento médico, fatores que aumentam o risco.
Além disso, quanto maior a escolaridade e o acesso a meios de comunicação, especialmente à internet —algo mais raro entre idosos, especialmente idosos pobres—, maior a facilidade de obter informações sobre datas, horários e locais de vacinação.
A população menos escolarizada é também mais suscetível a boatos sobre os imunizantes. Pesquisa feita em 2019 pela Sociedade Brasileira de Imunizações concluiu que a crença em fake news sobre vacinas é duas vezes maior entre quem estudou até o ensino fundamental ante quem chegou ao ensino superior.
A vacinação contra a Covid tem sido alvo de desinformação desde o anúncio dos primeiros testes. O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) já afirmou mais de uma vez que não pretendia tomar a vacina e comparou a imunização a um risco de “virar jacaré”, em alusão a supostos efeitos colaterais.
Estudos clínicos, porém, mostraram que a vacina é segura.
“Onde o acesso à informação positiva e confiável é menor, e onde há mais circulação de desinformação, a adesão pode ser menor. São pessoas que sofrem mais influência negativa de boatos. Hesitam, esperam um dado mais confiável”, diz Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações.
Líder comunitária e conselheira de saúde no Jardim Vera Cruz, na zona sul, Maria dos Anjos cobra uma atitude firme dos governantes. Ela relata que na comunidade há pessoas que têm receio de se vacinar, mas são minoria.
“Deveria partir dos nossos governantes informar bem a população e reforçar que é importante tomar vacina. Mas eles, especialmente o presidente, vão lá e falam o contrário. Aqui, a maioria quer tomar [vacina] sim, porque ou já pegou a doença ou perdeu pai, mãe, filho”, diz.
É o que diz o coordenador do Movimento Popular de Saúde do M’Boi Mirim, José Geraldo Araújo. “Tem uma pequena parcela da comunidade que fica receosa, mas tudo fruto do negacionismo do presidente. Isso gera desconfiança numa parcela da comunidade, principalmente na periferia, onde as pessoas têm menos esclarecimento”, diz.
A reportagem ouviu cinco agentes comunitários de saúde em regiões periféricas de São Paulo. Eles disseram que dúvidas a respeito da segurança e da eficácia das vacinas são frequentes e que muitos idosos são alvo de fake news e boatos sobre segurança.
Também relataram dificuldades para o cadastramento da população a ser vacinada (importante quando o idoso não tem acesso à internet ou precisa de atendimento em casa), como escassez de equipamentos de proteção pessoal para fazer as visitas, acúmulo de domicílios para um só agente e locais por vezes distantes do posto de saúde.
Em uma unidade de saúde no Itaim Paulista, na zona leste, o cadastramento e as visitas ficaram suspensos por duas semanas porque não havia máscaras para os agentes.
Os profissionais reforçam, porém, que a maioria dos idosos é receptiva à vacina.
Em nota, a Prefeitura de São Paulo afirmou que o sistema municipal de saúde atende 12 milhões de pessoas e dispõe de equipamentos capilarizados —nas regiões periféricas se concentra a maior parte das equipes de saúde da família.
Acrescenta que a vacinação ocorre em cerca de 700 postos espalhados pela cidade, inclusive todas as 468 unidades básicas de saúde, e que, até a sexta (9), 1,5 milhão de pessoas receberam a primeira dose e 652 mil, a segunda.