102 mortos em março: o colapso de uma UPA administrada pelo Einstein em SP 

Foi ao lado de dez pacientes espremidos em uma sala pequena, sem ventilação e água, que dona Aureny de Almeida dos Santos, 57, viu um homem da sua idade morrer a seu lado. Era o primeiro de outros tantos óbitos que ela afirma ter visto ao longo daquele sábado enquanto suportava, sem leito, as dores e calafrios provocados pelos sintomas da covid-19.

Aquela era a quarta vez que dona Aureny tentava ser atendida na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) Campo Limpo, zona sul de São Paulo, administrada pela Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Hospital Albert Einstein, OS (organização social), e eleita pela prefeitura referência para tratar covid-19 na região.

Na unidade, 102 pessoas morreram apenas em março esperando por um leito, segundo uma fonte que trabalha na UPA e que pediu para não ser identificada. A prefeitura e o Einstein não comentaram esse número. Em nota, a Secretaria Municipal da Saúde disse que “a taxa de mortalidade para pacientes com Covid-19 internados na UPA Campo Limpo é de cerca de 3%”.

O drama da UPA Campo Limpo retrata a “situação bastante dramática” que vive a saúde na capital paulista e no estado, nas palavras do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), no mês passado. De acordo com o boletim epidemiológico da Prefeitura de São Paulo, 1.213 pacientes com covid-19 estavam internados em UTIs de hospitais municipais e contratualizados no dia 15 de abril, com taxa média de ocupação de 86%.

Sem maca, dona Aureny precisou deitar em cadeiras antes de ser levada para uma “sala pequena e abafada com dez infectados” na UPA Campo Limpo (Foto: Arquivo Pessoal)

Na última terça-feira (13), a UPA cuidava de 51 pacientes, embora tenha sido construída com 39 leitos. Para tratar doentes com covid-19, sua capacidade foi aumentada para 87 vagas, insuficientes para os 130 doentes que chegaram a ser atendidos em um único dia. Trinta desses leitos são equipados com ventiladores, monitores para atender “adequadamente pacientes em situações críticas e semicríticas”, afirma a secretaria.

No período, os corpos foram tantos que superlotou o necrotério do complexo.

Para absorver a demanda, a OS contratou 108 profissionais de saúde, aumento “de 24%, totalizando 558 colaboradores”, segundo a prefeitura. Criadas em 1998, as organizações sociais são entidades civis sem fins lucrativos contratadas pela União, estados e municípios para administrar em seu lugar serviços públicos, como assistência à saúde.

Apesar das contratações na UPA, o número é considerado insuficiente por enfermeiros e médicos, que em alguns casos dobram plantões. Exaustos, há relatos de afastamentos por covid-19 e por abalo psicológico, uma taxa que “não ultrapassou 1% desde o início da pandemia”, garante a secretaria.

No começo do mês uma enfermeira desmaiou no corredor da UPA porque trabalhou três dias seguidos. “Ela foi para casa, ficou 24 horas descansando e voltou ao combate”, diz um funcionário do local.

Vi de tudo enquanto fiquei na UPA. Um senhor ouviu um ‘não’ quando pediu água. Fiz oração a Deus para me tirar de lá porque estava com muito medo
Aureny de Almeida dos Santos, cabeleireira

Do lado de fora, a angústia era de seu filho, o gerente de restaurante Fabio Almeida dos Santos, 39, que chegou à UPA com dona Aureny na madrugada do sábado, 20 de março. Aguardou por notícias até as 6h da manhã, quando a recepcionista pediu que ele voltasse outra hora.

“Naquela madrugada, vi quatro famílias chorando a morte de alguém. Voltei às 16h, quando me disseram que ela seria internada, mas continuei sem saber detalhes sobre seu estado de saúde”, conta Fabio.

Dona Aureny de Almeida dos Santos, 57, ao deixar o hospital após internação de 12 dias (Foto: Arquivo Pessoal)

Apesar da insistência, ele ficou dois dias sem receber qualquer informação sobre a mãe. Estarrecido, soube apenas na segunda-feira que ela havia sido transferida para o Hospital Municipal Guarapiranga, também na zona sul, onde ficou internada por 12 dias.

“Deus escutou minhas orações porque no sábado eu fui retirada daquela UPA”, diz Aureny.

Dona Eurides Maria, 61, não teve a mesma sorte. Após sentir falta ar no dia 15 de março, ela procurou a UPA Macedônia, zona sul. No dia seguinte, o posto comunicou à família que dona Eurides seria transferida para uma unidade de referência, mas não revelou que o destino era a UPA Campo Limpo.

Mesmo intubada na UPA Campo Limpo, dona Eurides Maria, 61, não resistiu (Foto: Arquivo Pssoal)

“Só no dia 20 descobrimos que ela não estava na UTI [Unidade de Terapia Intensiva], e sim intubada na UPA aguardando vaga em hospital”, conta a auxiliar de classe Ariane Carvalho Alves, 33, que por chamada de vídeo viu a mãe já intubada. “Foi a última vez que falamos com ela.”

“Por dois dias ficamos sem informações, mesmo ligando e indo até lá”, diz Ariane. O protocolo é outro: a família deve receber informações diárias sobre o estado de saúde do paciente por vídeo chamada ou mensagem no WhatsApp após as 18h, “prezando sempre pela humanização”, diz a secretaria.

“Só no dia 24, depois de muita insistência, conseguimos a informação de que minha mãe estava em estado gravíssimo e tinha sido transferida para a UTI do Hospital Campo Limpo, ali perto”, diz.

No outro dia, recebemos uma ligação informando que ela havia falecido um pouco depois das 5h da manhã.
Ariane Carvalho Alves, auxiliar de classe

Referência em covid-19

Referência para os primeiros cuidados de pacientes com covid, a UPA Campo Limpo tem a missão de cuidar dos doentes e encaminhá-los quando vaga algum leito em hospital. Ao chegar, o paciente é atendido em uma tenda montada para triagem.

“Se precisa internar, o familiar já não acompanha a partir dali”, diz o auxiliar de enfermagem Douglas Cardozo, que recebe no Hospital Campo Limpo, ao lado da UPA, os pacientes com covid-19 transferidos da unidade.

“Teve dias com 130 pacientes na UPA. Foram criados leitos extras, macas nos corredores”, conta o profissional, que também é o representante regional do Sindsep (Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo). “Não houve internações em corredores”, rebate a secretaria.

Segundo os cálculos da entidade, o afastamento por doenças respiratórias no começo da pandemia chegou a 30% do complexo, correspondente à UPA e ao hospital. A prefeitura fala em 3% da equipe em 2020, taxa que, após a vacinação, teria caído para 0,3%.

“Os profissionais estão recebendo apoio especializado para evitar stress e burnout e áreas de descompressão foram criadas”, afirma a secretaria em nota.

Foto: Arte/UOL

Por que a UPA superlotou?

“Houve um erro de planejamento das supervisões técnicas de saúde, que regulam a demanda por vagas”, diz Anderson Dimas Pereira Lopes, membro do Conselho da UPA Campo Limpo e do Conselho Municipal de Saúde na região sul.

Ele diz que a decisão foi que o Hospital M’Boi Mirim, na mesma região sul, passaria a receber apenas os pacientes com covid-19 do território do Jardim Ângela, deixando com a UPA Campo Limpo os doentes que chegam do bairro Paraisópolis e distritos como Vila Andrade, Capão Redondo, Campo Limpo e Jardim São Luis.

Mas a UPA só tem leito de enfermaria. É impossível não colapsar ao mandar toda essa população para lá
Anderson Dimas Pereira Lopes

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