Violência Racial: Uma leitura sobre os dados de homicídios no Brasil

Artigo produzido por Redação de Geledés

HÁ UMA MORTE NEGRA QUE NÃO TEM CAUSA EM DOENÇAS; DECORRE DE INFORTÚNIO. É UMA MORTE INSENSATA, QUE BULE COM AS COISAS DA VIDA, COMO A GRAVIDEZ E O PARTO. É UMA MORTE INSANA, QUE ALIENA A EXISTÊNCIA EM TRANSTORNOS MENTAIS. É UMA MORTE DE VÍTIMA, EM AGRESSÕES DE DOENÇAS INFECCIOSAS OU DE VIOLÊNCIA DE CAUSAS EXTERNAS. É UMA MORTE QUE NÃO É MORTE, É MAL DEFINIDA. A MORTE NEGRA NÃO É UM FIM DE VIDA, É UMA VIDA DESFEITA, É UMA ÁTROPOS ENSANDECIDA QUE CORTA O FIO DA VIDA SEM QUE CLOTO O TEÇA OU QUE LÁQUESIS O MEÇA. A MORTE NEGRA É UMA MORTE DESGRAÇADA

(BATISTA, ESCUDER E PEREIRA, 2004).

Os dados estatísticos de mortalidade por homicídios vêm ocupando destaque nas discussões sobre violência no Brasil. O tema é foco de análises e debates em instituições acadêmicas, organizações da sociedade civil e pela sociedade em geral, que procura refletir sobre o fenômeno que ceifa vidas de brasileiros, cada vez mais cedo. Homens jovens, particularmente da raça negra e dos centros urbanos, são as principais vítimas de homicídios.

Antes de dar continuidade a abordagem dos fatos se faz necessária a explicação sobre o conceito de raça. Neste trabalho, o conceito de raça será utilizado como uma categoria socialmente construída, que é empregada para informar como determinadas características físicas (cor da pele, textura de cabelos, formato de lábios e nariz) e também manifestações culturais, influenciam, interferem e até mesmo determinam o destino e o lugar dos sujeitos no interior da sociedade brasileira. A noção de raça, que ainda permeia o imaginário social brasileiro, tem sido utilizada para excluir ou alocar indivíduos em determinadas posições na estrutura social e também para deixá-los viver ou morrer.

Os dados registrados pela série documental Mapa da Violência: os jovens do Brasil , revelam que nossas taxas de homicídios são elevadas e tem como principal vítima a população do sexo masculino pertencente a raça negra. Negros é o grupo racial brasileiro mais vulnerável à morte por homicídios. O estudo aponta que no ano de 2004, a taxa de vitimização desse grupo foi de 31,7 em 100 mil negros, enquanto para a população branca foi de 18,3 homicídios em 100 mil brancos. A população negra teve 73,1% de vítimas de homicídio a mais do que a população branca (WAISELFISZ, 2006, p.58).

A denúncia da participação desproporcional de negros como vítimas de homicídios não é assunto recente. O Movimento Negro Unificado-MNU foi fundado no ano de 1978, em ato público realizado em São Paulo, onde denunciou, entre as muitas violências sofridas pela população negra, a tortura e morte de um homem negro nas dependências de uma delegacia de policia, crimes que foram praticados por policiais. No ano de 1995, o Movimento Negro entregou ao presidente Fernando Henrique Cardoso, o documento Marcha Zumbi dos Palmares, contra o racismo, pela cidadania e pela vida, que afirmava no capítulo referente à violência que “[…] de 1970 à 1992 a Polícia Militar de São Paulo matou cerca de 8.000 pessoas; das 4.170 vítimas identificadas, 51% eram negras, numa cidade em que, segundo o IBGE, os negros somam 25% da população” (MARCHA, 1995).

O documento informava ainda: “Deste modo, uma estratégia de repressão alterna agressões policiais, prisões arbitrárias, tortura e extermínio. Nesta estratégia, o principal alvo é o homem negro” (Ibid., p.11).

No ano de 1998, Barbosa (1998, p.100-101), em estudo sobre o perfil da mortalidade no Estado de São Paulo, afirmava que os índices estatísticos disponíveis à época sobre mortes violentas revelavam que homens negros tinham maior risco que os brancos de morrer por homicídios. Para a autora
[…] o perfil de mortalidade do homem negro oferece possibilidades de compreensão das condições de vida da família negra, em sua maioria, pautada pela carência em moradia, instrução, emprego e renda, onde se encontram em maior proporção as chefias de mulheres.

População marcada pela exclusão e marginalização, negros e negras brasileiros têm vivido há séculos como seres humanos destituídos de direitos e como portadores de uma humanidade incompleta, o que tornou natural a não participação igualitária dessa população do pleno gozo de direitos humanos. Esta naturalização implicou na aceitação das conhecidas desigualdades sociais que marcam a sociedade brasileira, sendo que a divulgação de dados sobre essa realidade não são acompanhados de medidas eficazes no combate às desigualdades raciais. O racismo estrutura e determina as relações raciais brasileiras e incide nas condições precárias de vida da população negra.

Hoje, constata-se um fato que o movimento negro denuncia há décadas: negros são os mais vulneráveis à violência, particularmente a letal, mas a desvalorização de sua vida é um fato sobre o qual pouco ou nada se discute. A preponderância de negros nas taxas de homicídios e a perda de vida de jovens negros em fase criativa, produtiva e reprodutiva não têm recebido o devido destaque na discussão sobre a mortalidade juvenil brasileira. Tal indiferença reafirma a situação de marginalidade, pobreza e opressão a que está submetida esta parcela da população, um grande contingente humano que integra o grupo dos que se encontram tradicionalmente sem acesso aos bens e serviços disponíveis na sociedade, estando irremediavelmente exposto à violência.

Nesse sentido a mesma autora reafirma que:

Os fatores macrossociais, instituídos pelas condições históricas, estrutura econômica, política, social, cultural e códigos legais, permeados pelo racismo, em distintos contextos históricos, condicionaram também a vida da população negra (…) e criaram condições adversas que impactam, de modo diferenciado, o perfil de mortalidade desta população. (Ibid., p. 93).

O diferencial na morte de negros é que ela é precoce e violenta. Estudo realizado por Paixão e Carvano (2008, p.180-181), analisou os indicadores sociais dos grupos de cor e raça que compõem a sociedade brasileira. Utilizando dados do período 1995-2006, analisou também o perfil da mortalidade da população brasileira segundo os grupos de cor e raça. O relatório apresentou os seguintes dados:

A razão de mortalidade por 100 mil habitantes decorrente de homicídios, entre 1999 e 2005, cresceu entre os homens pretos e pardos de 51,9 para 61,5 (18,4%). Entre os brancos, o indicador declinou de 35,8 para 33,8, ou 5,6%.

a incidência de homicídios entre a população jovem, especialmente de 15 a 24 anos de idade, assumiu característica de uma epidemia, mais uma vez, destacando-se sua importância entre os pretos e pardos do sexo masculino.

em 2005, a razão de mortalidade por 100 mil habitantes por essa causa, na mesma faixa de idade, entre os homens pretos e pardos, foi de 134,22. Entre os jovens brancos, foi de 66,8 (menos da metade).

As iniquidades raciais refletem-se na mortalidade da população negra e são decorrentes de condições históricas e institucionais que moldaram a situação do negro na sociedade brasileira. Os números revelam o que se deseja silenciar: a morte tem cor e ela é negra. Os jovens negros são as principais vítimas da violência, que vivem um processo de genocídio.

Não há como não associar a condição particular a que está exposta a população negra no Brasil com o disposto na Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (1948), que no seu artigo II define genocídio como

[…] qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tal como: assassinato de membros do grupo; dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo; submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial; medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; transferência forçada de menores do grupo para outro. (CONVENÇÃO, 1948)

Os dados que serão apresentados a seguir consubstanciam essa tese e revelam que a morte violenta tem cor e endereço, pois ela acomete negros, pobres e moradores de periferia e favelas, que morrem em função da omissão do Estado.

+ sobre o tema

para lembrar

“Polícia Militar reproduz métodos da ditadura”

Para Nadine Borges, integrante da Comissão Estadual da...

São Vicente adere ao Juventude Viva

  Parceria com o governo federal foi formalizada...

Três PMs envolvidos no caso Amarildo se entregam

Os três policiais militares do Rio que tiveram...

Estudo mostra que Pará tem 2º maior percentual de negros mortos pela polícia: ‘forma de apagar pessoas que vivem à mercê da vulnerabilidade’, diz...

Um estudo realizado em 8 estados do Brasil em 2022 colocou o Pará com o segundo maior percentual de negros mortos em operações policiais: foram 93,90% dos...

Uma pessoa negra foi morta pela polícia a cada 4 horas em 2022, indica boletim

A cada quatro horas, uma pessoa negra foi morta pela polícia brasileira ao longo de 2022. É o que indica o relatório “Pele Alvo:...

O enigma da esfinge baiana que nos devora

O Brasil descobriu, perplexo, a brutal política de segurança pública adotada pelos governos petistas baianos. Os conservadores festejam a descoberta e retiram das costas o fardo...
-+=