‘Voltar ao normal seria como se converter a negacionismo e aceitar que a Terra é plana’, diz Ailton Krenak

O líder indígena Ailton Krenak. Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

Líder indígena acredita que epidemia de coronavírus é reação do planeta a destruição e diz que precisamos mudar a sociedade: ‘É um anzol nos puxando à consciência’

Por William Helal Filho, do O Globo

O líder indígena Ailton Krenak. (Foto: Guito Moreto/Agência O Globo)

A epidemia de coronavírus que se dissemina pelo mundo é uma resposta do planeta à forma como a sociedade vem consumindo a Terra. Esta é a mensagem do líder indígena Aílton Krenak, original do povo krenak, no Vale do Rio Doce, em Minas Gerais. Mas, segundo o ambientalista, ainda se pode mudar esse quadro. Em entrevista ao GLOBO, ele diz que “nossa única chance” é aproveitar a quarentena global para refletir e mudar nossos hábitos enquanto sociedade.

— Agora, não são apenas cem quilômetros de rio. É o mundo inteiro que está parado — diz Krenak, durante uma entrevista via FaceTime. — É um silêncio mortal, causado pela epidemia, mas este silêncio também é vida. Pássaros estão voltando a locais de onde haviam desaparecido. A água suja está se tornando limpa.

Apesar de se referir ao homo sapiens na primeira pessoa do plural (“nós, humanos”), o ambientalista fala da nossa espécie como se fosse o advogado da Terra atuando num divórcio litigioso motivado por décadas de agressão. Krenak é duro com a Humanidade porque ela vem sendo muito dura com o planeta. Na perspectiva do autor de “Ideias para adiar o fim do mundo” (Cia. das Letras), assim como na de outros sábios indígenas, a pandemia de coronavírus é, sim, um resultado da forma bruta como a sociedade trata esse organismo que nos dá casa, água e comida. Mas ele próprio acha que não se trata de um rompimento definitivo.

— Nossa chance é aprender com o que está acontecendo. Voltar ao normal seria como aceitar que a Terra é plana.

No seu livro, você diz que o divórcio entre a Humanidade e o planeta poderia levar o organismo da Terra a deixar os humanos órfãos. Considera uma premonição?

Não gosto de ser autorreferente, mas basta olhar em volta e ver que não tem ninguém com problemas na Terra, a não ser a gente. O melão-de-são-caetano continua crescendo aqui do lado de casa. A vida segue. Só o que parou foi o mundo artificial dos humanos. Não fazemos falta na biodiversidade. Pelo contrário. Desde pequenos aprendemos que há listas de espécies em extinção. Enquanto essas listas aumentam, os humanos proliferam, destruindo florestas, rios e animais. Somos piores que a Covid-19.

Acha que este pode ser um abandono definitivo ou ainda podemos reverter isso?

Talvez seja como a imagem da mãe farta amamentando seu bebê. Ela se vira para o lado, e o bebê chora desesperado, esperneando porque ficou sem alimento. Logo depois, ela dá o outro peito. Mas penso que nossa única chance é aprender com o que está acontecendo. Não podemos achar que estamos vivendo tudo isso para depois voltar à normalidade. Voltar ao normal seria como se converter ao negacionismo e aceitar que a Terra é plana. Que devemos seguir nos devorando.

O que essa parada representa para a Humanidade?

Penso naquele verso do Carlos Drummond de Andrade, “Stop. A vida parou ou foi o automóvel?”. Esta é uma parada para valer. Quem está adiando compromissos para setembro, como se tudo fosse voltar ao normal, já está vivendo no passado. O futuro é aqui e agora. Ninguém escapa. Nem aquelas pessoas saindo de carro importado para mandar seus empregados voltarem ao trabalho, como se fossem escravos. Se o vírus pegá-los, eles podem morrer igual a todos nós. Com ou sem Land Rover. Estamos todos na mesma. Não vamos voltar àquele ritmo, não será possível ligar todos os carros, todas as máquinas, ao mesmo tempo. Vai ser posto em questão até o sentido de ligar tudo de novo.

O que podemos aprender com essa quarentena?

É como um anzol nos puxando para a consciência. Um tranco para a gente olhar o que realmente importa. Como alguém que muda de vida após sofrer um trauma. Espero que as pessoas percebam que as subjetividades que vivem num ambiente de amplo afeto estão mais equipadas para sobreviver ao que estamos passando. Quem vive só para si mesmo vai ter que encarar tudo sozinho, está ferrado. Cada olhar para o meu filho de 9 anos é único. Quando olho de novo, ele já mudou.

Há autoridades insistindo que devemos retomar a rotina em meio à crise da epidemia…

Há pessoas que mesmo depois do trauma continuam da mesma forma. Governos burros acham que a economia não pode parar. Mas a economia é uma atividade que os humanos inventaram e que depende de nós. Se os humanos estão em risco, qualquer atividade humana deixa de ter importância. Dizer que a economia é mais importante é como dizer que o navio importa mais que a tripulação. Coisa de quem acha que a vida é meritocracia e luta por poder. Não podemos pagar o preço que estamos pagando e seguir insistindo nos erros.

Por outro lado, há uma grande mobilização social para levar ajuda à população vulnerável durante a epidemia…

Vejo muitas redes de solidariedade, e isto tem que ser feito. Mas essas populações sempre foram vulneráveis. Por que só olhamos para eles agora? Por medo? Devemos expandir o sentido de solidariedade, olhar para os desfavorecidos como uma parte da sociedade tratada como subumanidade. Espero que as pessoas que abriram os olhos agora não os fechem depois. Não podemos voltar à hipocrisia de não enxergar essa vulnerabilidade.

É duro pensar que a gente só vai aprender às custas de tantas mortes…

É terrível o que está acontecendo. Mas a sociedade precisa entender que não somos o sal da Terra. Temos que abandonar o antropocentrismo, há muita vida além da gente. Todas essas mortes podem nos ensinar. Sempre fazemos referência a nossos ancestrais como aqueles que continuam nos ensinando a ser quem somos. Quem se foi ensinou a gente a estar aqui. É preciso aprender a honrar, em vida, aqueles que se foram.

Como os povos indígenas lidam com o coronavírus?

Muitos vivem isolados na floresta, mas nada além disso os protege. Não existe ninguém especial nessa crise. Aqui na aldeia krenak estamos recolhidos. Não estamos nos visitando. Meus primos ianomâmis (no Norte do país) me perguntaram, e eu disse para ficarem em isolamento, mesmo em seus territórios. Quem estava fora da reserva precisa ficar em quarentena antes de voltar.

Qual o maior risco, se o vírus alcançar uma aldeia?

Entre outras coisas, por causa dos nossos hábitos. Vivemos em comunidade, compartilhando tudo durante a rotina. O contágio pode se espalhar de forma muito mais fácil numa aldeia. Nossas festas, nossos rituais, está tudo parado. Estamos isolados em respeito à vida.

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