PNE e a “ideologia de gênero”

Mais um motivo apareceu para atrasar a votação do Plano Nacional de Educação (PNE), o qual já deveria estar valendo para o decênio 2011-2020. Um dos projetos de lei mais polêmicos dos últimos anos, o PNE define as metas e as estratégias da educação brasileira para os próximos dez anos, orientando as políticas educacionais em todos os níveis. Primeiramente truncado por conta das disputas em torno dos 10% do PIB (leia aqui), agora é a vez de o gênero entrar nesse balaio de gato. Opositores querem, a todo custo, retirar a assim chamada “ideologia de gênero” dessa lei.

por Adriano Senkevics

Setores conservadores, mobilizados por políticos fundamentalistas, têm se oposto à votação do PNE em razão de sua menção à “igualdade de gênero”. Nos termos dos obscurantistas, tratar-se-ia de uma “ideologia de gênero”. ( Reprodução/ensaiosdegenero.wordpress.com)

A rigor, o PNE fala pouco sobre gênero. Essa pequena palavra – que abriga um poderoso conceito – consta basicamente em uma frase do projeto de lei. No artigo 2º, voltado para a superação das desigualdades educacionais, há um destaque que acrescenta: “com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”. Pronto. Esta foi a deixa que o fanatismo religioso, personificado em figuras como Marco Feliciano (PSC-SP) e Marcos Rogério (PDT-RO), precisava para atrasar mais uma vez a votação do projeto.

Setores conservadores, mobilizados por políticos fundamentalistas, têm se oposto à votação do PNE em razão de sua menção à “igualdade de gênero”. Nos termos dos obscurantistas, tratar-se-ia de uma “ideologia de gênero”.

Críticas de setores conservadores e fundamentalistas têm denunciado a tal “ideologia de gênero”, defendida pelo PNE quando este assume um compromisso com a “igualdade”. Esses grupos temem pela “destruição da família”, os “valores e morais” alicerçados na “lei natural” e, evidentemente, o avanço das pautas LGBT, dentre as quais a diversidade sexual, a criminalização da homofobia e o progresso em torno da despatologização do segmento trans* – pontos, na verdade, que transcendem a escola.

Aqui, voltamos à velha discussão que já vem sendo encampada neste país há décadas. Como cidadãos e cidadãs, temos a infelicidade de ver no poder uma corja de políticos absolutamente descomprometidos com a igualdade, a tolerância, o respeito à diferença e, pasmem, à própria racionalidade. O obscurantismo tem sido defendido à luz do dia, e as imagens que vemos de jovens empunhando cartazes contra a “ideologia de gênero” e, pior ainda, reforçando a violência que é uma definição única e imposta de mulher, homem, família, moral etc, é de chocar.

Ignora-se que a igualdade de gênero é tão legítima, necessária e importante quanto à igualdade racial ou regional. Trata-se, pois, de discutir a sub-representação política das mulheres, as desigualdades no mercado de trabalho, a assustadora violência nas ruas e domicílios, a objetificação sexual na mídia, entre outras. Acima de tudo, a igualdade de gênero deve ser um valor democrático, tão legítimo quanto à liberdade religiosa que, diga-se passagem, nunca foi posta em xeque por nenhum setor progressista neste país. Até porque os mesmos grupos que defendem a igualdade de gênero são aqueles que apoiam o Estado laico – a instituição mais democrática no tocante à liberdade religiosa em uma nação multicultural.

pne-e-a-ideologia-de-genero2
O deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) tem sido um dos maiores defensores dos avanços sociais nas pautas relativas a gênero e sexualidade. ( Reprodução/ensaiosdegenero.wordpress.com)

O deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) tem sido um dos maiores defensores dos avanços sociais nas pautas relativas a gênero e sexualidade.

Nesse sentido, gênero é temido porque, de fato, é um instrumento valoroso. Longe de ser um conceito puramente acadêmico, gênero já se incorporou no jargão popular, nos movimentos sociais e nas políticas públicas. Essa rejeição à ideia de gênero reflete um sintoma de uma ordem social que está se sentindo ameaçada – a título de exemplo, casos similares aconteceram na França (leiaaqui). Dessa forma, procuram criminalizar não só os indivíduos ditos “diferentes”, como também seus termos, expressões e conceitos que dão voz a essas “diferenças”. Gênero é um deles, mas não o único.

Como já reiteramos inúmeras vezes neste blog, gênero é um artifício teórico, criado na segunda metade do século passado, para designar as construções sociais sobre o masculino e o feminino. Em pouco tempo, o conceito de gênero foi apropriado pelo movimento feminista e se transformou em uma importante ferramenta analítica e política, com a finalidade de desnaturalizar as opressões de gênero, descontruir verdades absolutas e imutáveis sobre mulheres e homens, derrubar as falsas fronteiras que nos demarcam em estereótipos cruéis para os quais somos levados a acreditar desde pequenos, separando-nos em pequenas caixinhas que limitam nossas individualidades, potencialidades e perspectivas.

Portanto, gênero não é uma ideologia. É, ao contrário, a desconstrução de uma ideologia que imputa à natureza, à biologia e supostamente a características inatas dos indivíduos, a carga pesada e histórica de desigualdades entre homens e mulheres, cis ou trans. Os movimentos sociais continuarão a insistir nesse ponto, até que cada resquício de obscurantismo de cunho fundamentalista seja derrubado e possamos, por fim, aprovar um PNE que reflita não só os interesses de uma educação pública de qualidade, como também de uma sociedade que pretende se livrar de desigualdades, violências e opressões – de gênero ou de qualquer outra origem.

Fonte: Ensaio de Gênero

+ sobre o tema

para lembrar

Nordeste é a região brasileira que mais lê, diz pesquisa

Entre as dez capitais brasileiras que mais leram em...

Imagens que mostram crianças com rostos pintados de preto em escola são criticadas, no RJ

Imagens de duas atividades promovidas dentro de uma escola...

Instituto Rio Branco fará seleção de bolsistas

O valor da bolsa é de R$ 25 mil...

Cerca de 50% dos jovens depende de programas do governo para cursar universidade

A pesquisa também perguntou aos estudantes o que pensam...
spot_imgspot_img

Geledés participa do I Colóquio Iberoamericano sobre política e gestão educacional

O Colóquio constou da programação do XXXI Simpósio Brasileiro da ANPAE (Associação Nacional de Política e Administração da Educação), realizado na primeira semana de...

Aluna ganha prêmio ao investigar racismo na história dos dicionários

Os dicionários nem sempre são ferramentas imparciais e isentas, como imaginado. A estudante do 3º ano do ensino médio Franciele de Souza Meira, de...
-+=