O que significa afirmar que as vidas dos negros e das negras importam?

Logo após o dia 25 de maio, marcado pelo brutal assassinato de George Floyd, homem negro de 46 anos, em Minneapolis, no sudeste do Estado de Minnesota, nos Estados Unidos, as ruas de dezenas de cidades norte-americanas têm sido ocupadas por manifestantes que denunciam o que esse crime efetivamente revela: o racismo institucionalizado que estrutura um amplo espectro de relações sociais naquele país. Mas, então, levanto a questão: por que apenas quando algumas de nossas mortes são filmadas é que a branquitude faz coro ao “black lives matter”? O racismo, como hoje o entendemos, não é sinônimo de “preconceito”. O racismo é uma estrutura que combina o preconceito ao poder, isto é, trata-se de uma opinião formada sem embasamento que conta, para a sua perpetuação, com diversos dispositivos que ordenam a vida, os corpos, as ideias e os espaços ocupados por pessoas, queiram elas ou não. Isso implica reconhecer a dimensão política desse fenômeno, para além de valores morais. Os símbolos mais visíveis e aparentes do racismo geralmente são associados a gestos pontuais de preconceito o que, frequentemente, oblitera a arquitetura subterrânea que fundamenta a manutenção do poder desse ato de violência: o poder que os brancos exercem sobre os negros.

“Brancos” e “negros” são identidades raciais coletivas construídas ao longo da história e que até hoje ordenam os lugares que os corpos por elas definidos podem ou não ocupar em suas respectivas sociedades. Assim, não cabe aos indivíduos, em suas mentalidades supostamente particulares, decidirem se gostariam ou não de serem vistos  ou de enxergarem negros, brancos ou – para mencionar uma expressão da moda na direita racista – “apenas humanos”. As diferentes lutas por poder e dominação ao longo da história manejaram, invariavelmente, identidades coletivas para organizar, em algum grau, os grupos envolvidos na dinâmica do conflito em questão. São essas identidades coletivas que dão os contornos dos diferentes conteúdos atribuídos entre aqueles que consideramos como “nós” e aqueles que denominamos, simultaneamente, como “outros”.

Ocorre que, dentre os amplos e variados processos dos quais as sociedades norte-americana e brasileira são produtos diretos, duas identidades coletivas foram formadas para manter e, constantemente, reinventar uma hierarquia social. Acima das outras identidades coletivas que organizavam, por um lado, grupos de europeus em unidades menores nos séculos XV ao XIX (cristãos, cristãos novos, judeus, protestantes, portugueses, espanhóis e etc.) e, de outro, sociedades do que hoje é o continente africano (hauçá, iorubá, mbundo e etc.), bem como suas respectivas recombinações e reconfigurações após a diáspora atlântica (jeje, nagô, iorubá, banto, malê, mina e etc.) – vale dizer, identidades coletivas que dispõem de aspectos culturais distintos e que referem-se a escopos espaciais com diferentes abrangências –, duas identidades raciais coletivas foram constituídas concomitantemente à colonização. À medida que diferentes impérios coloniais europeus foram exercendo variados graus de dominação em regiões africanas, e sobre suas respectivas populações, os contornos de uma “branquitude” e de uma “negritude” começaram a ser delineados. E, analogamente à relativa permanência das assimetrias do sistema internacional na travessia dos séculos – embora tenham ocorrido significativas mudanças –, essas duas identidades, que estigmatizam populações plurais e as reduz a dois grandes conjuntos, ainda operam nas raízes de nossas existências sociais.

O crime cometido contra George Floyd, assim examinado, reverbera uma espessura temporal que remete à colonização europeia de regiões africanas e seu violento tráfico para as Américas. Sua envergadura coloca em movimento uma experiência sedimentada por muitas vidas e gerações ao longo de séculos, uma hierarquia racialmente organizada que, apesar de antiga, ainda é vigente nos dias atuais. Uma potente arma discursiva frequentemente manejada pela direita racista consiste, justamente, em escamotear a historicidade das relações raciais tentando dar a ver apenas a superfície do preconceito, de gestos individuais isolados (exemplo disso é a equivocada metáfora das “maçãs podres” que avalia o ato racista exclusivamente através de critérios morais e não políticos, isto é, relativos às formas de organização da vida em sociedade).

Negar a historicidade dessa hierarquia racial serve a dois propósitos. O primeiro deles é evidente: atribui à violência racista o estatuto de “prática individual” eximindo, assim, a branquitude da responsabilidade subjacente àquele acontecimento pontual, qual seja, que a carga semântica atribuída a certos vocábulos de caráter racista, embora sejam enunciados pela voz de uma pessoa, adquiriram conotação violenta justamente em função da hierarquia racial que organiza a vida de todos os envolvidos em sociedades marcadas pela colonização e pelo tráfico de africanos. São conceitos que, coletivamente constituídos, enfeixam uma experiência secular de agressão. O segundo propósito, menos aparente, refere-se ao desarmamento da única ferramenta capaz de combater aquela violência: a politização da consciência racial da negritude. Ao simular a “desracialização” de uma violência cujo poder advém, precisamente, da hierarquia racial, a branquitude procura se esquivar de uma responsabilidade coletiva e, frequentemente, atribui àquele subjugado racialmente o ônus de ter, supostamente, “racializado” o conflito. Em outras palavras, dissimula-se uma “inexistência de raça” com a intenção de evitar o confronto com uma estrutura que organiza a vida em sociedade. Exemplo cristalino dessa lógica é a equivocada acusação das cotas raciais como sendo racistas: pelo contrário, as cotas raciais estão amparadas por uma leitura da historicidade da hierarquia racial e, diante dessa assimetria historicamente constituída, propõem uma resposta racializada para desmontar os efeitos de desigualdade ensejados por uma hierarquia das identidades raciais que, até o momento, tem empoderado os brancos.

O assassinato de George Floyd corresponde, historicamente, à manutenção do poder branco sobre a negritude. As manifestações norte-americanas em resposta a sua morte constituem, por sua vez, a adequada reação daqueles que procuram desmontar essa desigualdade e assimetria de longa duração. Se elas são rotuladas de “terroristas”, já podemos ter uma noção de quem elas aterrorizam. Para além da importância inestimável da vida de George Floyd, seu lugar social o posiciona como herdeiro de gerações de negros que lutaram contra a violência racial e a politização de seu assassinato permite evidenciar a permanência institucional dessa brutalidade inaceitável que, forçosamente, o integrou ao grupo de vidas negras tomadas por forças estatais que o Brasil e os Estados Unidos tanto testemunham.

Uma resposta eficaz contra os efeitos de uma hierarquia racialmente estruturada, profundamente enraizada em diversas instituições da vida atual, cuja densidade temporal e historicidade remetem à colonização europeia de povos africanos, é a politização da identidade racial da negritude. Afirmar que “a vida dos negros importa” apenas e exclusivamente quando somos assassinados por forças policiais é traçar um limite muito longe do aceitável. Aceitar a afirmação de que as vidas dos negros e das negras importam implica assumir um compromisso político com a desmontagem sistemática dos diversos dispositivos e ferramentas que perpetuam o poder da branquitude sobre os negros. É entender, portanto, que o racismo é o fundamento e a arquitetura subterrânea dos Estados nacionais que, intencionalmente, reinventaram hierarquias raciais após a desagregação da escravidão negra de modo a impedir, assim, uma subversão radical dos poderes constituídos. É compreender, desse modo, o significado profundo que conecta o assassinato de George Floyd aos assassinatos de João Pedro, Marielle Franco, Evaldo dos Santos, Clautênis José, Wesley Rodrigues, Wilton Domingos, Cleiton de Souza, Roberto Penha, Carlos Eduardo, Claudia Ferreira, Amarildo… Como diz o poeta da zona de confronto: “existe pele alva e pele alvo” (Emicida, Ismália, 2019).

Thomáz Fortunato, historiador

 

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 ¹ Este texto contou com os comentários de Tailane Machado, Rafaél Antônio e Vítor Resquin Rodrigues.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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