“Eu não consigo respirar”: a retórica antirracista da branquitude no Brasil e o mito de ninguém solta a mão de ninguém.

Estou transformando a minha tristeza em um breve texto que não dimensiona tudo, mas para falar que, por mais que ame pessoas brancas, não há condições de lidar com atitudes hipócritas enquanto os meus morrem a cada 23 minutos.

Fazia parte de um grupo de WhatsApp formada por pessoas de esquerda, intelectuais, pesquisadores, economistas, artistas… sendo provavelmente uma das únicas negras do grupo, senão a única. Já tinham compartilhado no grupo uma transmissão de vídeo de mulheres negras se batendo como se fosse engraçado. Não parecia nem de longe um pensamento da maioria, mas o silêncio é tudo, menos antirracista.  Pontuei e pensei em sair – e deveria tê-lo feito – mas permaneci, sei lá o porquê. Talvez fazer parte de um grupo de pessoas interessantes mexa com a nossa vaidade, não é mesmo? Preciso elaborar melhor, pensar e sentir…

Ontem à noite li um grande absurdo nesse grupo de WhatsApp: “Ta na hora de nossos negros massacrados começarem a pedir a sua alforria tb”. Eu tive um looping como se alguém tivesse me lançado direto ao século XVIII. Veio um misto de tristeza, dor pelos meus antepassados e, sim, muita raiva. Já está difícil demais o contexto social, político, econômico e espiritual brasileiro para ainda me exigir amor e tolerância.

Ainda num recuo de tempo   lembro-me  pequena com os meus pais e tios falando do MNU, de reuniões e protestos, enquanto trançavam nossos cabelos…  Me recordo,  no casamento de uma prima Iara -também ativista de MNU – e seu marido Paulão, da Zezé Motta elogiando minhas tranças, enfatizando a importância de valorizar a nossa beleza e tradição ancestral. A sensação que tive é que o samba-enredo da Mangueira de 2019, tão antológico quanto belo, falando da luta dos negros por séculos no Brasil, havia sido simplesmente apagado nessas palavras.

Sim, amigues, eu respondi. Relendo-me  acho que fui até fofa (tenho uma amiga que sempre diz  sou mais doce do que  imagino rs, tudo bem, não é para tanto, rs).  Eis o texto: 

Primeiro, os negros não são “nossos”:  isso já é uma narrativa escravagista. Sim, nós  fazemos é muito. Mas é pouco para lutar contra uma estrutura social arraigada na violência física,  econômica, política, simbólica. Vamos continuar e, assim como lá no EUA, não somos uma sociedade sozinha, então aliados brancos na luta antirracista são bem vindos.

Contudo,  quero destacar no racismo estrutural nesse contexto (como em outros) reside não no que é  dito, e sim, no que não é dito. Salvo um jovem querido, que não conhecia antes de participar desse grupo, e que  me apoiou e da minha amiga que falou antes de mim (enquanto eu estava imersa no meu looping, revendo Rubens de Falco na minha frente) obtive de outras  mais 40 pessoas de esquerda… o silêncio. O que chamamos de “pacto narcisístico da branquitude”. Ninguém comenta. Finge que não leu que passa. Afinal, “ninguém solta a mão de ninguém”! Só que já nem pegaram. Aproveito para desmistificar esse mito de que ninguém solta a mão de ninguém, palhaçada!

Daí a questão não é dizer se fulano é bom ou mau, não rola ser simplista/maniqueísta. Mas chamo atenção para esse racismo que se manifesta pela ignorância de não saber,  que vem na brincadeira, nessa quase  “não maldade” e nas palavras mal empregadas. É ele que também alimenta a Sarah Winter e sua pseudo Ku Klux Klan porque, de fato, pouco avançamos  no combate ao racismo, mesmo  em tempos de “quase democracia”. Esse racismo subterrâneo pouco transcendente, também é racismo, nos invisibiliza. E é  muito mais comum na esquerda do que se imagina (lembre-se que não diálogo com fascistas, ou seja, me é o único diálogo possível).

Acho que já passou da hora da branquitude de esquerda lidar com os seus fantasmas. O racismo é um problema branco que está em todos os brancos, com mais ou menos consciência. Assumi-lo e encara-lo,  para nós, negros, já é muito bom. Porque é cansativo demais ter que explicar, drena as nossas energias… 

Sim, nós  negros no Brasil não somos  iguais aos negros  estadunidenses. Assim como os brancos brasileiros de esquerda estão muito mais longe dos brancos estadunidenses antirracistas. Esqueçam o discurso. Esqueçam a síndrome da princesa Isabel. Não dar conta de ser antirracista, ok. Agora, por favor, apenas parem de ser colocar como antirracistas. A gente não avança com retórica e postagem nas redes sociais. Só a ação muda a vida. É um exercício a ser praticado, até que um dia tenhamos de fato um corpo branco antirracista para valer. Não digo tacar fogo em prédio, falo em se posicionar, desaprovar o amiguinho, quebrar o silêncio. E aí, será lindo.

Outra coisa: a bendita da cordialidade. Seja de direita seja de esquerda, a cordialidade não é boa pra Preto. É o que nos ferra sorrindo. Nunca será antirracista se quiser ser sempre o legal com a galera. Sim, terá de ser chato, sim, por vezes… muitas vezes. Serás o chatão da galera, o cricri.

Para ser antirracista precisa ter cuidado com a história oficial, respeito às tradições africanas, não reproduzir narrativas racistas, piadas racistas, músicas racistas e vídeos racistas. Esquecer determinadas expressões como “denegrir”, “mulato”, “inveja branca”. Dê crédito aos PretXs! Quando ouvir algo legal de PretX, divulgue: ó, ouvi uma parada maneira dX PretX. Não é demérito admirar PretX.

Antes disso, se você já aceitar estar atento a qualquer sinal do teu de racismo será maravilhoso. Isso é 1000  vezes melhor que do ser “antirracista de live”¹ (categoria criada por mim),  aquele desconstruidão que fica de casa postando como seria, como estaria na luta, faz discurso pros amigues no Hangouts e, quando rola algo para valer, se esquiva. Sério, isso é uma catástrofe porque não ajuda a gente a avançar numa questão central. Se hoje a gente assiste a esse nível de racismo descarado é porque por muito tempo alimentamos o racismo educado, divertido e/ou desentendido. 

Acredito na esquerda como campo de construção e com o  qual dialogo. No entanto, como  diria a querida filósofa, também de esquerda e preta, Sueli Carneiro: “ entre a esquerda e a direita, contínuo preta”. 

Só faço esse textão porque não quero ficar me repetindo e porque acredito no diálogo no campo da esquerda, mas não estou aqui para ficar explicando o tempo todo  porque isso ou aquilo é racismo, porque blá blá blá. O racismo é branco e lidem com ele.  

 A mim me cabe defender meu povo Preto com as armas que disponho: computador, papel, caneta e uma voz que sabe gritar. Pois daqui do subúrbio (onde nasci, me criei e  estou a cuidar dos meus pais nessa pandemia) vejo ônibus lotados de irmãs e irmãos pretos que não têm o privilégio que eu tenho de trabalhar de casa; eu vejo e ouço os helicópteros da polícia que passam dando rasante que estremece tudo aqui em casa e que eu sei que estão indo  assassinar irmãs e irmãos pretos nas comunidades.

Enquanto na luta antirracista  o papel da  branquitude é   lidar e superar o seu racismo e o meu é cuidar para que saibamos nos defender e tratar das nossas feridas a cada ataque racista. Como sou ambiciosa quero poder propor uma construção coletiva que possibilite um  mundo partindo de uma perspectiva de vida segura e digna para meu povo preto.

Nunca percam de propósito, pretos e brancos: “NINGUÉM É TÃO BOM QUE NÃO POSSA MELHORAR” (PASSOS, R.M.S, 2020 – #eumesma)

[1] – É um primo-irmão do Che Gue Wando (categoria criada há anos mim): aquelX que mira no Che Guevara mas acerta no Wando, de tão obscenas que são suas posições de  esquerda. Em geral, esquerdomachos, pseudo proletários…


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