Lugar de Fala: repercussão de caso Vini Jr debate excelência negra e atraso de discussão racial na Europa

Uma semana após episódio virulento de racismo em estádio, uma análise sobre as principais discussões despertadas pelos gritos de “macaco”.

Vítima. Várias vezes vítima. Ou seria alvo? A tarde de 21 de maio no Estádio Mestalla, em Valência, na Espanha, fez parecer que, ao sair de São Gonçalo, Vini Júnior levou na bagagem a tábua de tiro ao alvo citada na canção brasileira. Mas o que o jovem, de apenas 22 anos, tenta mesmo é fazer valer o trecho que o rapper Djonga canta “Não queremos ser o futuro, somos o presente”. Aquela tarde tocou em feridas que sequer tinham cicatrizado.

Ataques que partiram de um setor do estádio que abrigava torcedores alinhados à extrema direita, incorporados por tantos outros espanhóis que ali estavam e, unidos num coro odioso, usaram o termo ‘macaco’ e várias outras aberrações racistas para se referir ao brasileiro que é estrela do Real Madrid.

Vinícius Júnior e racismo são palavras correspondentes nas pesquisas do Google desde os primeiros destaques dele no futebol.

Menino, é como muitos chamam homens adultos envolvidos em comportamentos duvidosos. Sendo assim, bem que poderíamos usar o termo para definir o que Vini ainda era quando foi atravessado, pelas primeiras vezes, pelos cortes da ponta de lança da violência racial.

Cria da periferia fluminense

O passado de Vini Jr guarda um contexto conhecido no futebol brasileiro. Fruto da periferia do Rio de Janeiro, o jovem é natural do bairro de Porto Rosa, em São Gonçalo. A juventude rodeada pela violência urbana e as desafiadoras condições questionam a ascensão socioeconômica de quem vem de realidades semelhantes.

Mas na adolescência, período de dúvidas sobre futuro, Vini já tinha uma certeza: o futebol. A relação com o esporte começou na pequena infância, aos 14 anos já fotografava com troféus na mão e a camisa do time de coração, o Flamengo. Foi promessa na equipe rubro-negra até os 16, quando virou certeza numa venda de 45 milhões de euros ao Real Madrid.

Estava sacramentado, Vinicius Júnior se mostrava, ali, um dos principais nomes do futebol de sua geração. Uma estrela, talento nato e pronto para orgulhar o Brasil por onde passasse. De São Gonçalo para o mundo numa velocidade digna de craque.

Prometeram que a excelência negra bastaria

Vini Júnior é excelente no que faz, os resultados e a ascensão meteórica comprovam isso. Excelência negra, amplamente presente em diversas áreas, inclusive no futebol. Certa vez a intelectual Sueli Carneiro lançou mão da excelência negra para definir Pelé, e colocou como revolucionário o melhor jogador do mundo ser um homem preto que brilhava no campo na mesma época de importantes lutas por independência em países africanos.

Sueli destacou o que conseguimos provar numa rápida análise das melhores escalações que a seleção brasileira já teve: nossos craques são, na maioria das vezes, jovens negros advindos das periferias brasileiras. Alcançados pelo esporte, agarraram o sonho que virou ideal nacional na tentativa de ter a vida inteiramente transformada.

A excelência negra, provada em resultados incontestáveis, é forjada na subjetividade das populações pretas de muitas formas. Esperam que sejamos muitas e muitas vezes melhor, como se precisássemos provar o tempo todo que merecemos os espaços que ocupamos.

A psicóloga Estela Miriam enxerga essa cobrança como algo adoecedor e fruto do racismo estrutural “é como se pessoas negras nunca fossem suficientes ou merecedoras, o sistema às cobra por performances exacerbadas, o que causa uma pressão psicológica que pode acarretar problemas duradouros, como a ansiedade e a depressão”, comenta a especialista.

Mas quando essa excelência é alcançada, reiterada até, o que pessoas negras ganham em troca? Tamanho sucesso deveria blindar atletas como Vini Jr de qualquer audácia racista.

Mas nenhum lampejo de liberdade do sistema racista vem depois da excelência. Ela prova o que nós, que não somos racistas, sempre soubemos: que pretos são potentes e podem fazer o que quiser. Mas ela não nos liberta de violências discriminatórias.

Ao contrário, a excelência preta desperta a revolta de racistas incapazes de lidar com pretos que vencem obstáculos, se destacam e ascendem para um lugar de privilégio socioeconômico graças ao brilhantismo (e, claro, às oportunidades, visto que meritocracia é uma falácia que só reforça desigualdades).

E sim, o futebol guarda um histórico racista e perverso. A Justiça da Espanha, por exemplo, abriga 10 denúncias de racismo sofrido por Vinícius Júnior em partidas de futebol.

O racismo no campo precede o jovem de 22 anos, vem dos tempos dos nossos craques antigos, e sempre foi um coro duplo: era o escape do ódio que contra pretos se potencializava de um jeito particular, além da incapacidade de lidar com a excelência.

De queixo erguido, Vini confronta e escancara “Espanha é um país de racistas”

O mais chocante da tarde de domingo, que violentou Vinicius e, através dele, milhares de brasileiros que sofreram sua dor, não foram apenas os ataques dos torcedores. Depois dos insultos que vieram das arquibancadas, o jogador brasileiro não se calou. O que se espera dos pretos expostos pelo racismo é o silêncio. Como ele ousou rebater?

Se quem cala, consente, responder os racistas virou questão de honra para Vini Jr. Ele mostrou revolta, teve a reação deslegitimada, foi punido e expulso. Depois do jogo, jornalistas espanhóis ignoraram o racismo sofrido por ele e apontaram o jovem como raivoso, chegaram a questioná-lo sobre a forma como encontrou de se defender. Mais um estereótipo racista sendo reforçado.

E assim, desumanizando uma vítima que já havia sido desumanizada, espanhóis mostraram a face de um país que sabe pouquíssimo sobre o debate racial do século 21. É nítido que foi exatamente a resposta de Vinícius que deu ao episódio as proporção global que ele teve. Ao recusar as ofensas ele deixou claro: “não me calarei, irei até às últimas consequências”.

Reagir ao racismo é uma forma de constranger os opressores. Foi um modo encontrado por ele, também, para levantar uma discussão que parecia adormecida, ou quase inexistente. Esta semana várias informações valiosas vieram à tona.

Uma matéria do El País expôs a ausência de especialistas espanhóis para discutir questões raciais do modo como conhecemos, pautadas na desigualdade e numa hierarquia imposta em relação a cor e características físicas. Perceberam, ainda, a falta de dados para mensurar o problema racial no país.

Os jornalistas não conseguiram encontrar números sobre etnia e raça da população. Para onde se caminha um país que não consegue discutir uma questão tão sensível e urgente como o racismo? Foi mais fácil mapear a presença da xenofobia, a aversão constante a imigrantes a ponto de entendê-los como adversários a serem derrotados.

O último relatório sobre a evolução dos crimes de ódio na Espanha, publicado em 2021, oferece uma visão geral do fenômeno. Dos 1.802 casos registrados, mais de 35% foram decorrentes de ataques racistas, os mais numerosos. O estudo também mostra que os crimes de ódio associados ao racismo cresceram quase 32% de 2019 a 2020. A análise também é parcial porque 90% das vítimas não denunciam.

Nas redes sociais, intelectuais contemporâneos comentaram sobre o que para muita gente parece impensável: apesar de enfrentarmos violações diárias, o Brasil está muito avançado no debate racial. Isso não vem do nada, os quase 400 anos de escravidão no país empurraram uma grande parcela da população negra para o ativismo. Séculos de resistência sociopolítica que deram frutos a passos necessários para nossa sobrevivência neste século.

Desde as lutas abolicionistas, passando pela criação e fortalecimento dos quilombos, chegando a empreitada do Movimento Negro Unificado no século 20 por políticas públicas. Cada movimento um grito que se assemelha ao de Vinícius Júnior: “não nos calaremos”. Foi a insistência coletiva que conquistou políticas mínimas de reparação, como a Lei de Cotas e as leis que punem casos de racismo e injúria racial.

A ignorância espanhola diante de violações escancaradas nos mostra que muito adianta esmiuçar temas complexos. O que pode parecer óbvio por aqui, ainda precisa ser muito explicado e contextualizado em outros países, para que situações como a que vimos no estádio espanhol não sejam nunca mais normalizadas ou amenizadas por quem precisa ser convencido de que aquilo foi racismo.

Os frutos do atrevimento de Vini Jr

Um preto atrevido pode mudar o mundo. Foi com essa crença e uma exaustão diante das violências sofridas que o jogador brasileiro não só respondeu em campo, como teve pulso firme para enfrentar todos os desafios desde o último episódio de racismo. Vini confrontou o presidente da La Liga, responsável pelo campeonato em que tudo aconteceu. O brasileiro apontou o silêncio de Javier Tebas como conivência, o gestor esportivo chegou a dizer que se aquilo para Vini era racismo, o jovem tinha que se informar mais.

Vini não cedeu e o espanhol teve que se desculpar, chegou a prometer punições mais severas aos times em que torcedores façam ataques racistas. A insistência de Vini no combate ao racismo fez ligas esportivas no mundo inteiro repensarem o modus operandi diante de episódios que tinham passado a normalizar.

O caso chegou a causar uma rusga diplomática entre Brasil e Espanha, com o presidente Lula e o Ministério da Igualdade Racial reivindicando, diretamente, que lideranças espanholas tomassem atitudes necessárias.

Diante de tudo isso, quem teve o propósito fortalecido foi o Instituto Vinícius Júnior, em São Gonçalo. A obra social existe para melhorar a base educacional das crianças da comunidade, garantindo uma formação antirracista. É a resposta que Vini dá, no campo e fora dele, da tolerância zero aos racistas que, de agora em diante, ao menos têm certeza de que em silêncio ninguém nunca mais ficará. E a excelência preta eles terão que engolir.

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