Tudo o que se espera de nós

Thiago foi mais um sonho interrompido por tudo o que o Brasil espera de jovens negros e moradores da Cidade de Deus, andando na garupa de uma moto

Dia desses, o algoritmo me mostrou uma entrevista de Baby do Brasil. Era uma gravação sem qualidade, uma entrevista antiga, em que ela contava a paixão que sentiu quando viu Gilberto Gil pela primeira vez no palco. Eu salvo um milhão de coisas por dia, mas curiosamente não salvei esse vídeo. Então vou ter que confiar na minha memória. E, se a memória não me falha, Baby dizia que se impressionou porque Gil era o contrário de tudo o que o Brasil esperava que os negros fossem. Essa fala não para de ecoar na minha cabeça desde então.

Ecoou ainda mais alto quando ouvi o disco “Xande canta Caetano”. Eu estava no avião e definitivamente não estava preparada para ouvir “Muito romântico” na voz do Xande, com arranjo e produção musical de Pretinho da Serrinha. Alguém já me disse que está comprovado cientificamente que as pessoas têm mais probabilidade de chorar em voos. Não sei, mas o Caetano também chorou e estava em terra. Eu duvido que algo em 2023 vai ser mais bonito que essa música.

Xande de Pilares — Foto: Divulgação

O Xande já era esse tudo que o Brasil não esperava muito antes disso. Qualquer carioca de favela e subúrbio lembra de um álbum do seu Grupo Revelação, “Ao vivo no Olimpo”, que vendeu mais de 700 mil cópias — originais, porque todo mundo que eu conhecia tinha o CD pirata. A regravação da música “Se”, do Djavan, que fechava o álbum, foi recantada por todos os grupos de pagode como uma revolução.

É até difícil dizer, porque Xande e Revelação fazem parte das minhas melhores histórias de família e de amores de adolescência. Como esquecer dos shows nos morros da Formiga, Salgueiro e Turano, na época de “o ar que se respira agora inspira novos tempos”.

Mais recentemente, vi Xande numa participação no Baile do Almeidinha. Eu, Marina, Kamilla e Ana na primeira fila e com os olhos cheios d’água. Depois do show, encontramos Xande por acaso no corredor, pedimos uma foto, dissemos que estávamos na plateia e que estávamos muito felizes. Ele nos olhou e disse: “Eu vi vocês”. A gente queria morrer de emoção, porque não era qualquer coisa ser vista pelo Xande.

Xande cantando Caetano é tudo que eu esperava de um artista que diz que viu sua plateia. Mas a gente sabe que não é o que o Brasil espera de um homem negro, cria do morro do Turano.

Eu estava ali, chorando no avião ouvindo aquele disco lindo e com a frase da Baby ecoando na cabeça, porque, horas antes, a imagem que eu vi era a de um caveirão sendo lavado na porta do Hospital Getúlio Vargas, repleto de sangue. Depois, na mesma noite, Thiago Menezes, de 13 anos, foi morto alvejado por cinco tiros na Cidade de Deus. A fala da tia de Thiago revela tudo o que a família esperava dele: um estudante e jogador de futebol. Mas Thiago foi mais um sonho interrompido por tudo o que o Brasil espera de jovens negros e moradores da Cidade de Deus, andando na garupa de uma moto.

A Anistia Internacional lançou a petição “Gente é pra brilhar, não pra morrer de tiro”, inspirada na música “Gente”, cantada pelo Xande. A instituição cobra uma ação direta do Ministério Público: “Foram mais de 50 mortes em operações policiais em poucos dias, em SP, RJ e BA. Os MPs não podem fechar os olhos para essa realidade, já que é deles o dever de fazer o controle externo da atividade policial no Brasil. Está na Constituição!”

Além de “Gente”, eu trago os versos de “Muito romântico”: “Tudo o que eu quero é um acorde perfeito maior/ Com todo mundo podendo brilhar num cântico”. E que possamos viver muito mais do que o Brasil ainda espera de nós.

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