Estremecimentos no meio diplomático

A notícia sobre as declarações do cônsul geral do Haiti em São Paulo me chegou  primeiro pela CBN, no dia seguinte a sua participação no programa “SBT Brasil”. Fiquei impressionado com a indignação do locutor, que recomendava ao Itamaraty a expulsão de George Samuel Antoine.

Sabe aquela indignação justa diante de uma manifestação inequívoca de racismo?  O locutor da CBN parecia não querer perder a oportunidade de reafirmar valores caros aos brasileiros: impossível conviver, numa sociedade como a nossa, com uma pessoa dessas – fora!

Eu estava na cozinha, preparando meu café e ouvindo rádio e me convenci de que já havia ganhado meu dia. Na manhã  seguinte, ganhei  também o mês ao ler a reportagem da “Folha de S. Paulo” sobre o mesmo episódio (FSP, edição de 16/01/2010. p. A21).

O repórter Vinícius Queiroz Galvão referiu-se a “um mal-estar nos meios diplomáticos”, causado pelas declarações do cônsul do Haiti. Pelo verbo utilizado, foi um rápido abalo, você sabe como é. Vinícius Queiroz Galvão escreveu que as declarações “estremeceram ontem a repercussão da tragédia que deixou entre 45 mil e 50 mil mortos”.

Aqui é um lugar onde vivem também “Les damnés de la terre”.  Assim, presumivelmente, a maldição está à solta, já que todo lugar em que vivem africanos (e seus descendentes, presumo) “está fodido”. Mas  julgo que precisaríamos distinguir entre “em todo lugar os africanos estão fodidos”  de  “todo lugar em que vivem africanos está fodido”.

De qualquer forma, em um ou outro caso, a causa será a mesma: mexer com macumba. O cônsul, após 35 anos de Brasil, está  atualizadíssimo com a agenda  interna da intolerância. Manifestações religiosas africanas, por essa visão, são a encarnação do mal. Lúcifer matou Zilda, etc. Com fartura de imagens de destruição, sofrimento e morte os pastores neopentecostais e outros  vão fazer uma festa por esse Brasil afora: quem mandou mexer com macumba? Largue isso, assuma Jesus e evite um grande terremoto no Brasil.

Ao resumir os dados biográficos e profissionais do cônsul, o repórter Vinícius Queiroz Galvão arriscou-se francamente a perder seu emprego. Vejamos: “Nascido em Porto Príncipe e representante branco de um país de população majoritariamente negra, Antoine é cônsul em São Paulo desde 1975, indicado durante o regime de terror do ditador haitiano Jean Claude Duvalier, o ex-presidente e também ditador conhecido como Papa Doc”. Que tal?

Arrisco dizer que o texto de Vinícius causou grande estremecimento no Itamaraty e adjacências. Esse negócio de representante branco de país majoritariamente negro é especialmente problemático. Vinícius, pelo que pude entender, rejeita ou critica o contorno aristocrático e uma concepção de Brasil desenvolvida desde tempos imemoriais na Casa do barão do Rio Branco. É isso mesmo, Vinícius? Entendi também que, além da cor da pele, as raízes ditatoriais deslegitimam o mandato do cônsul Antoine – sugestão para inserção futura no PNDH 4.

Na linguagem utilizada pelos editoriais dos jornalões brasileiros,  se diria que o texto do repórter da Folha recebe forte influência do discurso racializado do movimento negro. Os manuais de redação orientam que Vinícius deveria ter se limitado a mostrar a inadequação das declarações do cônsul, acentuando  que elas comprometem a “singularidade do Brasil no horizonte cultural do planeta’, ou coisa que o valha. Compreende-se, no entanto,  no caso da CBN, que a sugestão de expulsão possa ser atribuída aos excessos do emocionalismo, presente ainda, infelizmente, nas transmissões radiofônicas.

O cônsul fica porque há sinais visíveis de uma boa adaptação ao país. Com excelente domínio da língua, demonstra também saber o que é certo e o que é errado para os nativos, ainda que eventualmente possa ser objeto aqui e ali de hipócrita reprovação. O repórter da Folha é que, ao apropriar-se de um discurso de movimento negro, parece querer sabotar práticas jornalísticas consagradas em nosso meio. Ninguém vai demitir esse cara?

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