‘A canção não vai deixar de existir’, diz Gilberto Gil

Músico baiano gravou depoimento ao Museu da Imagem e do Som, no Rio.

Coletânea com versões do cantor para músicas de Luiz Gonzaga sai em julho.

Por: Henrique Porto

 

 

Foram quase seis horas de bate-papo, novo recorde da série “Depoimentos para a posteridade” do Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio de Janeiro. O autor da façanha foi Gilberto Gil que, durante a tarde e a noite desta terça-feira (6), deixou registrado para o acervo do museu um relato ora emocionado, ora bem humorado de suas vidas pessoal, artística e política. Um exercício positivo, segundo análise do próprio músico.

“Recordar é mais do que viver. É viver duas vezes. São dimensões novas. Se foi ferida, já curou. Se foi prazer, já desvaneceu”, disse o cantor baiano, que respondeu perguntas de uma banca de entrevistadores formada pelo escritor, produtor, letrista e jornalista Carlos Rennó; pelo pesquisador e antropólogo Hermano Vianna; pelo cantor, compositor e escritor Jorge Mautner; e o produtor e pesquisador cultural Marcelo Fróes, além da presidente do MIS-RJ, Maria Rosa Araújo.

Gil relembrou a infância em Ituaçu, a descoberta da música, os festivais, o tropicalismo, a ditadura e o desempenho como Ministro da Cultura do governo Lula, entre outros momentos. E disfarçou acerca da aparente memória privilegiada. “Para lembranças remotas, sou bom. Já sobre o que aconreceu na semana passada…”, brincou o compositor, que completa 70 anos no próximo dia 26.

Verbo e verba

Segurou o choro pelo menos duas vezes: quando recordou o nascimento de Nara, primeira de seus seis filhos e citou sobre o show realizado no plenário da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, em 2003, a convite do então secretário-geral da ONU, Kofi Annan. “Preferi ser um ministro do verbo a um ministro da verba”, destacou Gil, revelando que aceitou o cargo depois de “pensar em conjunto” com colegas como Caetano Veloso e Chico Buarque.

Chico e Caetano são personagens recorrentes no testemunho de Gil. Até que o baiano relembra uma entrevista ao jornal “Folha de São Paulo”, em dezembro de 2004, na qual o autor de “A banda” determina que “a canção já foi, passou”.

“Entendo o que Chico quer dizer, mas não acredito que a canção vá desaparecer, vá deixar de existir. As mães, pelo menos algumas delas, vão continuar cantando canções de ninar para os filhos. É quase como a própria formação do leite nas glândulas mamárias. É algo intuitivo”, disse Gil, citando o compositor Adroaldo Ribeiro Costa, autor dos hinos do Bahia e do Senhor do Bofim.

“Adroaldo compôs o tema do programa de rádio ‘A Hora da Criança’, que dizia assim: ‘Enquanto nós cantarmos, haverá Brasil.’ Então, enquanto nós cantarmos haverá canção, nação, tradição, cultura. Enquanto houver ser humano na face da Terra, estas coisas que nasceram por obra e necessidade do espírito humano permanecerão mesmo que transformadas, transmutadas e transmigradas.”

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A prova dessa crença pode ser traduzida por meio de sua produção contemporânea. Gil não para de gravar e lançar discos. Depois do “Concerto de cordas e máquinas de ritmo”, que vai virar CD e DVD no segundo semestre, chega às lojas mês que vem a coletânea “Gilberto Gil canta Luiz Gonzaga”. Produzido por Marcelo Fróes numa parceria entre a Warner e o selo Discobertas, o disco reúne 14 canções do Rei do Baião gravadas por Gil ao longo de seus 49 anos de carreira. Entre elas estão “Vem morena”, “Asa branca”, “Juazeiro” e “O xote das meninas”.

Leia trechos do depoimento de Gilberto Gil ao MIS-RJ, que estará à disposição do público nas salas de consulta do museu, na íntegra, a partir da próxima semana.

Infância

“Sou filho de um médico e de uma professora. Talvez por essa criação, cultura ou índole mesmo eu tenha sido uma criança muito comportada. Comportada até demais.”

Alfabetização

“Eu e minha irmã Gildina não frequentamos a escola primária em Ituaçu, município em que cresci, no interior baiano. A responsável por estes ensinamentos foi a nossa avó Lídia, que era formada pelo Instituto Normal da Bahia e morava com a gente. Nossa escola foi em casa, entre panelas e os artesanatos dela.”

Contato com a música

“O rádio foi minha primeira fonte de acesso à música. Ficava ligado em casa quase que o dia inteiro. Ouvíamos muito a Rádio Nacional, a Rádio Tupi e a Rádio Mayrink Veiga. Não tínhamos vitrola em casa. Então eu ouvia discos de Bob Nelson, Irmãs Batista, Dalva de Oliveira, Ângela Maria, Nora Ney e Luiz Gonzaga na casa de importantes comerciantes da cidade, que já tinham o aparelho.”

Escola

“Só fui para a escola quando me mudei para Salvador. Eu tinha uns 10 anos. As turmas eram enormes, era uma algazarra total. O primeiro dia foi uma aflição total. Quase desmaiei.”

Acordeão

“Foi meu primeiro instrumento. Aprendi por causa da minha mãe. Fiz aulas particulares, dos 10 aos 14 anos, com o médico argentino José Benito Colmenero. Ele dava aulas no próprio consultório.”

Violão

“O violão era de Gildina, que ganhou o violão na época da chegada da bossa nova. Logo depois de ouvir João Gilberto, comprei um método. Sempre fui muito mais interessado no instrumento do que minha irmã. Acabei sequestrando o violão dela. Mais tarde, já aos 18 anos, minha mãe me deu dinheiro e pude comprar o meu. Fui à Mesbla e comprei um Di Giorgio Author 3.”

Gessy Lever

“Fui selecionado para ser trainee na Gessy Lever. Assumi minhas funções por um ano, e participei da preparação do lançamento do sabão em pó Omo. Eu gostava de trabalhar lá, era divertido fabricar sabonetes (risos).”

Ditadura

“Por causa da necessária resistência ao golpe, surge a chamada música popular brasileira e a famosa sigla MPB. Cheguei a fazer parte do Centro Popular de Cultura (CPC), mas no meu diálogo com a tuma comunista em Salvador, eu aparecia sempre como um viés. Eu não tinha 100% de alinhamento com as ideias deles. Então eles tinha uma denominação específica para esse tipo de gente: eles chamavam de ‘linha auxiliar’ (risos).”

Resistência

“Eu dizia nas minhas discussões: ‘Não acredito nessa utopia.’ Nunca acreditei nesse grau perfeito de harmonia definitiva na sociedade humana. E isso só piorou com o passar do tempo. Sou partidário do ‘caminho do meio’, na igual possibilidade dos extremos. Mas o maniqueísmo da época exigia justamente estas extremidades.”

Tropicalismo

“Uma vez perguntaram para o meu pai numa entrevista: ‘O que o senhor acha dessa coisa do tropicalismo, com a qual o seu filho se meteu?’ E ele respondeu: ‘Tropicalista mesmo sou eu!’ Ele era médico e tratava de doenças tropicais (risos).”

Prisão

“Sempre achei que seria preso. Era uma espécie de lixo atômico. Muita coisa estava contaminada por aquele material radioativo. E viramos pode expiatório: ‘Prendam o Gil e o Caetano, que essa MPB toda já fica avisada!’ Éramos os alvos mais fáceis, mais imediatos. Porque os militares tinham o amplo aval de vários setores da sociedade brasileira para que fizessem aquilo.”

Flora

“Foi quem unificou minha família e convocou todas as mães para o seio desta transfamília que se formou. Ela ajudou profundamente a recuperar minha amizade com minhas ex-mulheres. E foi fundamental quando eu e Sandra perdemos nosso filho Pedro (morto em um acidente de carro em 1990).

Minsitério da Cultura

“Fiz uma reunião na minha casa para pensar na proposta. Pensei em conjunto. Chico disse assim: ‘Para você pode ser uma complicação. Para nós vai ser ótimo (risos).’ Não tenho nenhum arrependimento. Pelo contrário: tenho muitas boas lembranças. Sou grato ao presidente Lula e a mim mesmo por ter tido essa experiência (risos).”

Cotidiano

“A primeira coisa que faço depois que acordo é ginástica. Faço sozinho, sem aparelhos. Diria que é um misto de ginástica e yoga. É assim todos os dias. Mas não gosto de acordar cedo. Também gosto de tocar violão. Às vezes vou ao meu escritório, para receber pessoas e conceder entrevistas. Nesta quinta (7) mesmo preciso ir até lá, pois o grande saxofonista americano Charles Lloyd, que está no Brasil, quer me encontrar. À noite, gosto de ver televisão, principalmente as séries. Adoro ‘House’, que já está acabando (risos). Essa novela, a ‘Avenida Brasil’, eu também estou assistindo. Tem personagens muito bem feitos, como é o caso da Carminha (interpretada por Adriana Esteves).Gosto de estar em casa todo o dia às 21h (risos). Vou muito pouco ao cinema, porque o cinema já está ficando muito presente na própria TV. Mas gosto dos filmes, principalmente coisas antigas que não tinha visto ainda. E gosto do futebol na televisão.”

Eleições

“Votarei em Marcelo Freixo (deputado estadual do PSOL) se ele for candidato à prefeitura do Rio de Janeiro. Mas não vou participar da campanha. Já considero declarar voto uma forma de campanha.”

 

Fonte: G1

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