“A lógica racista naturaliza e romantiza a violência sofrida pela população negra”

De uns tempos pra cá me pus a observar um pouco mais as facetas do comportamento humano e chego a conclusão óbvia de que vivemos numa dualidade.

O ano era 2012 quando fui apresentada à obra coreográfica de Marcela Levi e Lucía Russo, chamada Natureza Monstruosa. Com micronarrativas, a animalidade humana é exposta na sua forma mais pura e terrível e fala sobre o quanto nosso lado monstruoso nos assombra e é ativado em momentos comuns do cotidiano.

Mas até que ponto essa monstruosidade é algo inconsciente? Ou será que damos lugar a ela quando invisibilizamos algo que não é inerente ao interesse pessoal?

Pois bem, acho que primeiro vale uma ilustração bem básica, uma comparação que até certo ponto faz sentido. Por exemplo, o comportamento de um cachorro: animal sem racionalidade considerada que é capaz de ver outro da mesma espécie morto, putrificado e não ser impactado por isso. O bichinho cheira o pedaço de carne e, em algumas situações, pode até comer aquele podrinho… Brinca no entorno, pisoteia e, no final, mija em cima e segue seu caminho como se nada tivesse acontecido.

Falta o afeto.

Poderia estar falando sobre um fato muito particular de um cachorro, mas se pararmos para observar, mesmo nós, seres que estão de certa forma cobertos pelo guarda-chuva de princípios sociais humanos, nos permitimos tais similaridades de um jeitinho muito natural.

Falta atenção.

2019, o ano em que o Brasil tem um dos maiores índices de instabilidade política seguido de impactos e resultados sociais negativos, incoerentes e com péssimas repercussões internacionais. Alguns fatos não são novos?

– Quando falamos de escravidão de negros e exploração indígena no Brasil, a tendência é se dedicar à memoria de algo antigo, enterrado e finalizado… Outros tempos do país. Isso abre precedentes para que a cultura estabelecida no período se mantenha institucionalizada, tome todo dia facetas contemporâneas e continue a gerar consequências que respondem a todos – TODOS – os problemas sociais no Brasil.
O problema está no fato do Brasil não querer discutir e não resolver tais problemas.

Como discutir ditadura militar, sem antes falar sobre escravidão, suas consequências e a condição do negro no Brasil?

A seletividade de causa fala sobre o que realmente nos importamos e o que deve ser considerado.

Falta urgência.

Por que toda causa vinda de recortes vulneráveis é sempre minimizada ou relativizada? Não seria a falta de empatia um traço monstruoso?
Eu gosto de dar nomes às coisas. Para esse tipo de movimento, chamo de racismo mesmo.

Da mesma forma cruel, um carro com uma família foi alvejado com 80 tiros por engano. O pai não resistiu. Além dele, um dos acompanhantes que estava no carro e uma pessoa que passava na rua também foram baleados.

Na favela da Mangueira, uma senhora de 76 anos foi assassinada pela polícia junto com sua filha de 42, em plena luz do dia. Os agentes omitiram socorro e debocharam do que viam.

Cláudia Ferreira, mulher morta e arrastada pelo carro da Polícia Militar.

111 tiros disparados contra um carro com 5 jovens. Todos assassinados pela polícia.

Na última sexta, 20 de setembro, Ágatha Felix, de apenas 8 anos, foi assassinada no Complexo do Alemão-RJ, quando estava dentro de uma van. Um único disparo da Polícia Militar sem motivo aparente acabou com a vida de mais uma criança.

Poderia passar horas citando atrocidades que acontecem em favelas e regiões periféricas. São essas estratégias legitimadas pelo Estado que acontecem TODOS OS DIAS. TODOS!

Mas o que vale agora é se questionar de um único fato:

TODAS AS VÍTIMAS SÃO NEGRAS.

Concluímos que não estamos apenas falando de mortes, mas da construção monstruosa chamada RACISMO.

Falta reparação.

E ainda sobre nossa natureza monstruosa, no último sábado, após o assassinato de Ágatha Félix, uma empresária/socialite de Brasília realizou sua festa de aniversário com a temática FUNK.

E foi com cenografia de tijolos empilhados, tonéis de caixa d’água azul com bebidas gelando, grafites, barracos. Até uma pilha de pneus que fazia menção ao cenário atroz do chamado microondas – local onde inimigos do tráfico são incinerados vivos. Além de pessoas com réplicas de armas, figurinos vexatórios e performance boçal.

Mais do que mau gosto, a festa nada mais é do que um desfile de terror racista que replica o cenário genocida que mais mata no mundo: a condição real das favelas cariocas.

Falta empatia.

Quantas vezes foram vistas encenações de entretenimento de horror mencionando o holocausto ou qualquer outra genocídio na história da humanidade sofrido por brancos ou recortes de peles mais claras (pessoas lidas como brancas no Brasil), que tenha ficado impune? Hiroshima e Nagasaki? Nunca e claro que não!

Fato é que a lógica racista naturaliza e romantiza a violência sofrida pela população negra.

Nossos corpos têm peso diferente na avaliação do que é humano ou não.

Quantas vezes por dia estamos dando lugar a nossa natureza monstruosa?

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