Liberdade religiosa se fortalece com pluralismo laico, não com teocracia
Por Thiago Amparo, na Folha de São Paulo
Algo de bom se perdeu no discurso de Bolsonaro na ONU semana passada, quiçá inaudível dada a histeria com a qual o mandatário decidiu revestir sua fala míope. “A perseguição religiosa é um flagelo
que devemos combater incansavelmente”, disse o presidente, corretamente. Num tom teocrático, citou Deus quatro vezes.
Quase invariavelmente, frases de efeito são carregadas de ironia. Desde o início de seu governo, em sua cruzada anti-gênero, Bolsonaro tem se alinhado em votações nas Nações Unidas a países pouco
amigáveis a cristãos, como Arábia Saudita e Paquistão. Ao viajar a Israel no começo do mandato, Bolsonaro não se importou em visitar a vizinha Belém, na Palestina, cidade onde historicamente cristãos comandam a prefeitura.
Se quisermos proteger liberdades religiosas, precisamos separar o joio do trigo. É um estado laico plural que melhor garante liberdade a todas as crenças, não uma teocracia.
Discursos extremados de vitimização perpetuam a polarização que fundamenta a atual política de ódio, de todos os lados. Ministra Damares disse à Folha que sofreu “perseguição religiosa” por ser pastora e ministra. De um lado, discriminação contra evangélicos pode ocorrer e isso não está em debate. Inclusive, a lei pune em pé de igualdade discriminação religiosa, LGBTfobia e racismo. Questiona-se, no entanto, se num país onde três em cada dez brasileiros de 16 anos ou mais (29%) se declaram evangélicos (Datafolha/2016), podemos falar em perseguição.
À proteção das liberdades religiosas, melhor caberia por um lado moderar adjetivos e por outro diminuir a instrumentalização da religião evangélica por certos setores da direita e demonização dela por alguns setores de esquerda.
Damares usou seu poder nas redes sociais para atacar a revista que trouxe informações sobre aborto seguro. Crivella colocou a prefeitura a serviço de sua visão retrógrada sobre LGBTs. Não é com o uso da máquina pública para regular a sexualidade alheia que a liberdade religiosa será protegida.
A ambos, caberia atentar para as demandas que importam ao seu público evangélico. Se a tese de que o voto evangélico se pauta por uma “retórica da perda” da estabilidade social em um mundo de mudanças constantes —como defende a socióloga Christina Vital da Cunha (UFF)— o público evangélico poderá se cansar do diversionismo moral se não vir melhoras reais em suas condições sociais, cedo ou tarde.
Pluralidade dentro das religiões é algo que não pode ser ignorado. Modelo do político “despachante de luxo de igrejas” é constantemente criticado nos próprios círculos de fé, como nos convoca a pensar Carlos Bezerra Jr. no livro “Fé Cidadã”. Católicos, maioria no país mesmo em queda, votaram quase igualmente em Bolsonaro e Haddad em 2018.
Religiões de matriz africana e espíritas são alvos constantes de perseguição religiosa, muitas vezes violenta, embora tenham sido ignoradas no discurso do presidente na ONU.
Espaços de fé desempenham papel central na vida democrática. Instrumentalização da religião para fins políticos —como relatado pela advogada Silvia de Souza na Revista Sur— terá os dias contados quando percebermos que é a liberdade religiosa, em si um direito humano, que mais perde num estado teocrático de inclinação autoritária. E tal instrumentalização é um desserviço ao trabalho social que igrejas evangélicas e de outras crenças e religiões tem feito ao país.
“O sinal indicador do fanatismo não é o volume da sua voz, mas a atitude com a voz dos outros”, escreveu certa feita o israelense Amós Oz.
Proteger minorias religiosas e evitar que as maiorias religiosas usem o poder para oprimir quem delas discordar: é este o papel de um Estado laico e plural. Uma fé democrática, portanto.