Com Ágatha foi-se a utopia da inclusão

Morreu o sonho de uma família que acreditou na educação como passaporte da mobilidade social

Por FLÁVIA OLIVEIRA, do O Globo

FLÁVIA OLIVEIRA /Foto Marta Azevedo

Quando percebi minha mãe morta, oito anos atrás, faltaram-me primeiro as pernas, depois a linguagem. Eu tive de permanecer sentada ou ser amparada, porque a orfandade faz desmoronar os alicerces. Ela também me devolveu ao antigo primário, quando a voz era aguda, o vocabulário restrito e os tempos verbais, uma confusão. Atravessei os primeiros dias de luto com comida quente, de preferência caldos, e muita raiva do amanhecer — eu ficara órfã e o tempo teimava em passar, a vida a correr. No sétimo dia, escrevi. Mas até hoje não sei se me conjugo filha única no presente ou no pretérito: sou ou fui.

Foi assim que comecei a observar corpos e palavras dos enlutados — e a sofrer intensamente com eles, por eles. É comum vê-los amparados, como se caminhassem sobre um chão em pedaços. Os pais de Ágatha Félix, Vanessa e Adegilson, amparam-se mutuamente, olhos postos no infinito, na peregrinação a que se impuseram na busca de justiça pelo assassinato da única filha, aos 8 anos — com um tiro de fuzil saído de uma arma que não será identificada, informou a perícia.

Ailton Félix, avô de Ágatha, atravessado pela dor da morte precoce e inaceitável, desabafou: “Minha neta fala inglês, tem aula de balé, tem aula de tudo. Ela é estudiosa”. Nos enlutados é frequente a conjugação dos verbos no presente do indicativo, como a negar a vida interrompida do ente querido.

O assassinato da menina Ágatha me alcançou em múltiplas dimensões. Reconduziu-me aos sintomas pós-perda de Dona Anna. Ativou a empatia da mãe de filha única, na qual depositamos esperança, investimento, certeza de proteção. Revolveu a indignação contra a política de segurança que aplica pena capital e produz luto nas favelas, na periferia e nos lares de policiais. Desde fevereiro de 2018, quando foi decretada a intervenção federal, o Instituto de Segurança Pública contabilizou 8.758 homicídios no Estado do Rio; a polícia matou 2.624 pessoas, das quais 1.249 nos oito primeiros meses do governo de Wilson Witzel.

A morte de Ágatha escancarou a indiferença do asfalto com as vidas perdidas nos morros. Ativistas e moradores do Complexo do Alemão marcharam sós contra a brutalidade no sábado, horas depois de saberem que a menina não resistira aos ferimentos. Aglomeraram-se numa via da Fazendinha, discursaram, declamaram e oraram — à espreita, policiais e um blindado pintado de branco com a palavra pacificador impressa em azul. No dia seguinte, percorreram a pé, balões amarelos nas mãos, os três quilômetros entre a comunidade Nova Brasília e o Cemitério de Inhaúma, local do sepultamento. Apelavam a Deus, não ao Estado, cientes que estão do abandono contumaz.

No Alemão, choraram mães, avós, crianças de uniforme, jovens. É duro viver num país em que adultos são obrigados a enxugar as lágrimas do futuro. O Brasil atravessa o pico da população de 15 a 29 anos. Em vez de surfar o boom demográfico, entrega à faixa etária taxa de desemprego recorde, alto índice de informalidade, baixa remuneração, evasão aguda no ensino médio, a maior proporção de homicídios, escalada de mortes por suicídio e por colisões no trânsito.

O assassinato de Ágatha também sepultou o sonho de uma família que acreditou na educação como passaporte da mobilidade social. A menina do Alemão exibia boletim impecável, estudava inglês, balé e xadrez. Aspirava chegar à faculdade, anunciou o avô no velório. Mudaria de vida pelo ensino regular, pela formação profissional qualificada. É o caminho que o Brasil recomenda como mantra à população, mas pelo qual não zela. No Rio, meninos e meninas se protegem de tiroteios em corredores de escolas e são baleados de uniforme. Com Ágatha se foi também um tanto da utopia da inclusão social. Ficou a percepção amarga de que o bem-viver é miragem. Haveremos de superá-la. Não posso me entregar ao pessimismo.

 

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