André Novais: O Cineasta Filho de Dona Zezé, Uma Grande Atriz

Contagem, abril de 1968. Palco da primeira grande greve operária no recrudescer da ditadura militar no Brasil. Contagem semeia Lula em São Bernardo do Campo, décadas depois. Antes de abandonar a batina, um padre espanhol foi enviado à cidade industrial para ajudar a organizar os trabalhadores como era do feitio de um saudoso catolicismo das comunidades eclesiais de base. O então padre Ignacio Hernandez conta em Memória Operária, que na periferia de Contagem apareceu um poodle, com o qual se identificava muito, por ser branco e europeu demais naquela paisagem. Mas a fuligem do asfalto e das fábricas foi se assentando no pelo do cachorro, que se enturmou com os vira latas e as crianças da vizinhança. Povo. 

Contagem, abril de 2009. Uma baleia atracou no quintal do cineasta Gabriel Martins, em Filme de Sábado, que se tornou o manifesto da fundação da Filmes de Plástico, produtora que inventou mar, Marte e até  Oscar com sotaque mineiro, quebrando o eixo do Rio-São Paulo. A produtora nasceu numa Contagem que vivia a primeira gestão da prefeita Marília Campos do PT, mesmo partido no qual Lula encerrava seu segundo mandato. Em 2003, quando Lula assumiu a presidência, surgiu a Escola Livre de Cinema, na qual Gabriel Martins, André Novais e Thiago Macedo estudaram e se conheceram. E foi através do Prouni, programa de ampliação do acesso da juventude preta e periférica ao ensino superior na era PT, que os vizinhos Gabriel Martins e Maurílio Martins ingressaram no Centro Universitário UNA e puderam se formar em cinema. Gradualmente se alinhava o encontro do quarteto fantástico que compõe a Filmes de Plástico: os diretores André Novais, Gabriel Martins, Maurílio Martins e por fim o produtor executivo Thiago Macedo.

André Novais é nascido no Amazonas, periferia de Contagem, graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica, a PUC Minas, e tem formação técnica na Escola Livre de Cinema, onde conheceu Gabriel e Thiago, seus sócios de produtora. André é filho de Norberto, metalúrgico aposentado da montadora Fiat e Maria José, que foi funcionária pública da Rede Ferroviária Federal e irmão de Renato, professor de Geografia. Num estilo meio Russel Hobbs do Gorillaz, André toca bateria e contrabaixo e já teve uma banda de rock apoiada por sua família, que sempre acreditou na sua ludicidade artística. Quando um jovem negro na periferia de Contagem pode brincar e sonhar, certamente é algo a ser notado e quiçá celebrado. Na Escola Livre de Cinema André dirigiu o primeiro curta-metragem, que se intitula  Uma Homenagem a Aluizio Netto, que mistura ficção e biografia sobre um seminal cineasta mineiro, disponível no Youtube e o A Mulher Que Sabia Demais, sem cópias disponíveis. Vale ainda pontuar que André também trabalhou como agente de saúde de combate à endemias e zoonoses, o que certamente foi fundamental para a concepção de seu longa Temporada, bem como  trabalhou na locadora Videomania, junto com seu futuro sócio Thiago Macedo, onde refinaram ainda mais a cinefilia compartilhada. 

Em Fantasmas, seu curta de estréia na produtora, André Novais conquistou festivais pelo país inteiro e internacionalmente; como sintomas dos atravessamentos que esse filme provoca em quem  se aventura na arte e no ofício de assistir, sentir e fazer cinema na atualidade. Ou simplesmente em quem por ventura já stalkeou alguém ou recolheu cacos de dignidade para se reconstruir depois de um término de relacionamento.  O filme é  sobre o apego ao “fantasma da ex” que há três anos fere o ego do personagem brilhantemente vivido no antecampo por Gabriel Martins numa prosa quase insuspeita com Maurílio Martins da sacada de um muro de onde se espia a vizinhança na sofrida expectativa da aparição do espectro branco de Camila, a ex, que dispara um loop que é não apenas recurso narrativo, mas uma tradução interessante de aspectos da pulsão de morte, conceito freudiano que diz o quanto a repetição é sintoma do que não foi elaborado. Abusando da liberdade poética de acionar referências, Fantasmas avoluma André Novais à categoria de um Orson Welles dos trópicos, ou um jovem gigante negro com obsessões por Rosebud, como um possível “macguffin” que talvez esteja na força motriz e libidinal do autor e sua obra sensivelmente afeita à filmes sobre relacionamentos. Ou de um Federico Fellini de Cidades das Mulheres, onde assume  ser refém do mito de um ideal de mulher, que por fim lhe aparece como um espectro de beleza jovem e branca, como um retorno do recalcado. 

Em Pouco Mais de Um Mês, André aprofunda seu cuidadoso traço estilístico de fazer da câmera uma personagem destacada na história. Enquanto em Fantasmas a câmara de vigilância é flagrada como sintoma da dor da separação,  em Pouco Mais de Um Mês a câmara escura traz encantamento para um casal em começo de relacionamento. O recurso de projeção invertida da rua entre a cortina e o teto do quarto da namorada, além de trazer a magia necessária para quebrar gelos num incipiente processo de construção de intimidade; ainda ressalta a marca estética do universo da produtora de um profundo interesse na vida cotidiana, suspendendo  a sua banalidade e descortinando a sua poesia. O ano de estreia do curta é o famigerado 2013, que sacudiu o país politicamente, e cujos impactos ainda (des)organizam a nossa vida política. Curiosamente, na lista dos muitos festivais pelos quais o filme passou, é a primeira vez que se vê a produtora presente em festivais de cinema negro, como o Encontro de Cinema Afro Carioca Zózimo Bulbull. 

No ano seguinte em Ela Volta Na Quinta,  na esteira de uma profícua carreira de ficcionalizar a própria vida, André Novais traz pela primeira vez toda a família para seu longa-metragem de estréia, que foi filmado com orçamento de edital de curta-metragem. O filme é uma carta de amor de André Novais a algumas de suas referências no cinema como Charles Burnett ou da MPB que sedimenta o filme, cuja sinopse é o verso “alguém partiu, alguém ficou” da canção Nada de Novo do Paulinho da Viola. Um samba que dita bem o tom da obra, que tem a profundidade de uma cachoeira sugerida pelo negrume das rochas submersas. Aliada à delicadeza das águas paradas, o filme cria uma atmosfera de iminência de trombas d’água, na condução do fim do casamento de Dona Zezé e Norberto, premiados no 47o. Festival de Brasília.

Impossível não se emocionar com Dona Zezé pedindo a Norberto para ajudá-la a lembrar da canção Preciso Aprender a Ser Só, na voz de Maria Bethânia,  culminando com a dança da separação que se avizinha. É arrebatadora a doçura madura da personagem, que viaja até Aparecida do Norte para organizar as ideias, renovar a fé, ainda que volte magoada com a “vadia” que é amante do marido. De modo (in)consciente, André sabe bem como construir histórias em que mulheres negras são preteridas por outras mulheres brancas e mais jovens. Mesmo dolorida e adoecida, Dona Zezé é gigante em tela, nas suas múltiplas temperaturas de atuação, como na cena em que seu caçula, André Novais conta as agruras que é estar em festivais de cinema sem dinheiro para confraternizar numa feijoada prevista na programação. Curiosamente, a cena relembra e reatualiza a urgência do Dogma Feijoada (2002) encabeçado pelo cineasta negro Jefferson De, como um manifesto de cinema negro brasileiro cujo patrono é Zózimo Bulbull, com Alma no Olho (1974), curta-metragem seminal, feito com restos de película de um longa no qual atuou, o Compasso de Espera (1973). É isso: historicamente seguimos lutando para superar a reinvenção das sobras num movimento soul food que vai da feijoada ao cinema. Mas assim como Dona Zezé, seguimos acreditando, “que é muito mágico essa história de fazer cinema“. 

Depois do sucesso do seu primeiro longa-metragem, André Novas faz Quintal, um curta metragem no qual Dona Zezé e Norberto vivem “mais um dia na vida de um casal de idosos da periferia“, conforme a sinopse. O filme é uma obra prima que atesta mais uma vez a genialidade que André tem de olhar a vida ordinária com camadas de realismo mágico. Dona Zezé voa no seu quintal na companhia de um caramujo, que no candomblé é também conhecido como Boi de Oxalá, por traduzir a calma da temporalidade espiralar desse orixá que traz na sua casa-concha, a noção de Igbin como lugar de proteção, o que rima bem com a cinegrafia de um diretor tão canceriano como o André. 

E ainda, a inserção das relações de gênero na vida pública é tensionada de modo subreptício e bem humorado no filme, quando Dona Zezé é a rezadeira que entrega a cabeça de um político corrupto como matéria de capa e é ainda a senhorinha que pretende ser a sócia oportunista de um marombeiro de muito massa muscular e pouca esperteza. Concomitantemente, Norberto encontra o infinito acervo de pornografia de seus filhos, que desfruta com biscoito de polvilho até que atravessa um portal que se abre como fenda no quintal, dá rolezinho no além, volta à noite como se nada de extraordinário tivesse acontecido e se dedica tanto à pornografia que até vira tese acadêmica defendida na maior universidade pública mineira. Assim, a partir do protagonismo de seus pais e com ironia machadiana, André aborda o machismo nosso de cada dia. 

Em seu segundo longa Temporada (2018), André  Novais tece uma potente crônica da vida na periferia, pedindo licença  para entrar muito respeitosamente na intimidade das casas numa obra que fomenta a saúde  e afasta a morte; suplantando assim a necropolítica e inventando uma necropoética num melodrama com subtextos oníricos de realismo fantástico,  pitadas de ficção científica e comédia. No livro-diário em que conta todo o processo de feitura do longa, o diretor cita algumas obras que o inspiraram, especialmente Certas Mulheres de Kelly Reichardt,  Paterson do Jim Jarmusch, a série Horace and Pete. Temporada é protagonizado por Juliana, que muda de cidade para assumir a vaga no concurso público de agente de saúde no combate à dengue e outras endemias. 

Numa jornada de coming of age magistralmente encarnada em Grace Passô, Juliana entende que foi abandonada pelo marido desde um aborto acidental que abalou uma relação que se revelou dependente de uma ideia de maternidade compulsória. Apesar de ser muito reservada, aos poucos Juliana tece relações com colegas de trabalho e com a nova cidade.  Mais uma vez André propõe um sensível olhar sobre a imperativa solidão da mulher negra que se vê obrigada a buscar caminhos para a liberdade e a solitude, evidenciando o quão é raro uma mulher negra ter chances reais de ser amada, para além de ser sexualmente desejada, eventualmente. Essa solidão está estabelecida também no cotidiano da senhora muito simpática que oferece cafezinho com broa de fubá e queijo para Juliana, numa casa caprichosamente habitada por fotografias e a ausência dos filhos adultos. Essa é a derradeira cena  de Dona Zezé nos filmes de André Novais. Dona Zezé, tinha  65 anos quando em Ela Volta na Quinta se revelou uma das mais simpáticas e promissoras atrizes mineiras, numa carreira meteórica ceifada em 2018, na véspera de completar 71 anos. Considerando a importância dessa atriz no cenário mineiro, faz-se  uma breve digressão sobre sua carreira:

Nas notas do seu livro-diário do dia 19 de maio de 2018, André Novais escreveu: Aconteceu o que eu mais temia na vida: perder minha mãe. Ela faleceu dia 04 de maio. (…) E com os filmes que ela fez, vieram sets que ela curtiu muito, abraçava todo mundo com carinho, muitas novas amizades, reconhecimento pelas suas atuações, prêmios e viagens para diversos lugares (Brasília, Anápolis, Bagé, Teófilo Otoni – terra onde ela nasceu, São Paulo, onde ela morou por um tempo e inclusive Paris, que era o sonho dela. Como meu irmão falou esses dias, ela tirou muita onda com tudo isso. Nos últimos filmes que ela fez, eu ficava muito impressionado vendo ela decorando os diálogos em  casa, junto com meu pai, e na hora das filmagens interpretar de forma fantástica, com uma naturalidade incrível. Eu sabia do carinho da mãe pelas  pessoas, mas na verdade, foi nos filmes e nos sets de filmagens que fui realmente  descobrir o tamanho do carisma dela. Ela tratava a todos como filhos e fez diversas amizades bem sinceras nesse período. Isso a deixou muito feliz. Muito!

Dona Zezé foi o coração dos filmes de seu filho, ou como sugere Milton Nascimento em A Voz Feminina do Cantor, não é possível entender a voz de um artista sem a voz que ele traz no interior, ou a voz que o gerou. Dona Zezé é certamente o que há de melhor e mais sensível que habita o diretor e sua obra. André Novais já tinha um conjunto de outros roteiros pensando nela, como o longa  Se Eu Fosse Vivo, Vivia, ainda no prelo. Tentando elaborar o luto, André retomou um material gravado em 2011 e o lançou dez anos depois como o curta Rua Ataléia, em que sua família conversa à luz de velas, iluminando pensamentos e memórias. Por fim, Dona Zezé protagoniza o derradeiro curta-metragem Nossa Mãe Era Atriz, uma homenagem póstuma que compila preciosos momentos da trajetória cênica da Dona Zezé que diz tanto da sua genialidade espontânea em cena, quanto da habilidade de André Novais de dirigir e projetar a carreira de atrizes e atores não profissionais, uma vez que sua família toda seguiu atuando em filmes de outras pessoas. E trazendo a noção de ícone como a tradução do sagrado em imagens, é muito poderosa a ideia de que no  Ela Volta Na Quinta, Dona Zezé, negra à imagem e semelhança de Nossa Senhora Aparecida, tenha buscado alento no colo da padroeira do Brasil. A possibilidade de existência de uma atriz como a Dona Zezé é certamente um caminho de cura para as chagas do racismo no seio da nossa sociedade. 


Viviane Pistache é preta das Minas Gerais, pesquisadora, roteirista e, de vez em quando, crítica de cinema. 

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