Sinto muito, Evelyn não morreu

Na agenda de retomar um projeto civilizatório, no dia 17 de janeiro, em sua terceira gestão, Lula rompeu o consenso de Genebra contra o aborto, outro importante regogaço do latente desgoverno. E o aborto é legal no Brasil em três situações: gravidez decorrente de estupro, risco à vida da mulher e anencefalia do feto. Por incrível que pareça, essa é uma das legislações mais negligenciadas no país. Logo no início de seu mandato, a vereadora Marielle Franco apresentou o PL “Se é legal tem que ser real“, (16/2017), com objetivo principal de criar um programa de efetivação e atenção humanizada ao aborto legal na cidade do Rio de Janeiro. Além de exigir a garantia  do aborto legal, Marielle tinha plena consciência da dificuldade de diálogo com as mulheres pretas, periféricas e religiosas sobre a temática, por isso batalhou também pela garantia das creches noturnas para que a janela de sonhos e oportunidades das mães nunca diminuíssem. Marielle entendeu bem a complexidade do dilema: cobertura política para abortar ou avançar na gravidez. 

Todavia Sinto, dirigido por Evelyn Santos, é um filme que está bem nessa encruzilhada: Uma gravidez não desejada que atropela a existência de uma jovem negra quando ela prioriza incrementar sua promissora carreira cinematográfica em Cuba. Isso não está explícito, pois é um filme dos bastidores da intimidade, que ancora o roteiro também na troca de conversas de whatsapp, com um seleto grupo de confiança.  Eu confesso que conheço a Evelyn, pois estudamos juntas na Academia Internacional de Cinema, e seu contato está salvo no meu telefone como Evelynda, simplesmente. Ela passou pelo Instituto Criar e já estava estabelecida no mercado audiovisual como grande técnica de som. Todo dia num set diferente, de vez em sempre cochilava nas aulas. Vibramos quando ela conseguiu a bolsa para estudar na EICTV em Cuba. Não tenho dúvida: Evelyn será muito em breve, uma mulher negra fodástica como referência na direção de som do nosso audiovisual. 

A estreia de Evelyn como diretora é muito corajosa: ela anuncia que está grávida, que considera abortar, mas não pode publicizar a confissão de um crime,  já que seu suposto aborto não estaria contemplado na nossa legislatura. Mas Evelyn tem a malandragem da sobrevivência: realiza um filme em alto mar, território para além da legislação brasileira.  Se por acaso ela abortou, não seria presa, porque não estava sob jurisdição nacional. Mas ela revela cicatrizes que podem ser consequências nefastas tanto de um aborto perigoso ou de uma complexa cesariana. 

O que importa é que Evelyn sobreviveu, apesar dos Eduardo Cunha, Bolsonaro ou Damares legislando sobre seu útero. Assim, Todavia Sinto não é apenas um filme sobre aborto, é também uma obra sobre decisão e solidão, conforme ela me disse pelo zap:  “Sobre essas aflições, sobre como as pessoas te influenciam. E você sabe como é né?  É aquele pequeno instante quando você descobre que engravidou e o que fazer. Não é só sobre aborto, é sobre como as pessoas influenciam na sua decisão tbm. Sobre a solidão. Ou de que essa decisão depende de você. Passa tantos sentimentos na cabeça. Acho que é importante dizer isso, desse pequeno instante que ninguém fala. Desse pequeno instante de silêncio.” Evelyn coloca seu corpo à disposição de uma pauta fundamental, traduzindo um debate doloroso numa fotografia sublime e texto que embarga, resistente na tarefa de sobreviver.


Viviane Pistache é preta das Minas Gerais, pesquisadora, roteirista e, de vez em quando, crítica de cinema. 

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