Por que tentar retirar a autonomia da “cantora do milênio” e colocá-la num local de subalternidade é reforçar a lógica racista.
Por Djamila Ribeiro Do Carta Capital
Nesta semana, uma mulher branca sugeriu um boicote ao álbum Mulher do Fim do Mundo, de Elza Soares. O motivo é que o álbum não seria feminista, já que na sua produção trabalharam homens machistas. O argumento dá a entender que Elza estava sendo usada e não possuía consciência da potência do álbum.
Nele, Elza canta sobre a liberdade da mulher e a necessidade de uma vida sem violência. Logo, várias reações surgiram. A afirmação da moça foi vista como um desrespeito à trajetória de Elza, já contemplada com o título de “cantora do milênio”. E eu concordo.
Querer deslegitimar uma obra como essa por conta do envolvimento de homens machistas não é argumente que se preze. Fosse assim, nada na indústria cultural seria produzido porque machismo é um elemento estruturante da sociedade, e como tal, não há espaço que esteja isento – o mesmo acontece com o racismo.
Os espaços de poder ainda são dominados por homens brancos por mais que lutemos contra isso. Agora, torna-se muito problemático cair numa crítica desonesta que tenta deslegitimar o sujeito oprimido como se não tivesse agência e potencialidade. Falemos sobre a indústria e seus limites, mas sem desrespeitar uma grande cantora.
E faço a pergunta: qual artista de massa não está dentro da lógica da indústria cultural? Por que essa crítica só é direcionada às mulheres negras ou quando elas fazem muito sucesso?
Elza Soares possui uma história de muita luta. Nasceu pobre e enfrentou o julgamento moral da sociedade: ao se apresentar pela primeira, aos 13 anos, num programa de auditório, o apresentador, ao vê-la com roupas simples e franzina, perguntou: “De qual planeta você veio?” Ao que ela respondeu: “Do planeta fome”.
Elza é uma mulher forte, que tem muita consciência do que está fazendo. O engraçado é que esse tipo de “argumento” não se aplica às mulheres brancas com talentos duvidosos. Também ninguém nunca diz que a obra de algum cantor deve ser boicotada porque a indústria é racista.
É preciso ter honestidade para fazer o debate sério. Tentar retirar a autonomia de Elza Soares e colocá-la num local de subalternidade é reforçar a lógica racista. É colocá-la como incapaz de fazer escolhas ou de ressignificar símbolos.
Debater racismo e machismo estruturais não pode se confundir com deslegitimar o sujeito do grupo oprimido.
Debater sobre a apropriação cultural, que faz com os sujeitos negros que produzam a cultura não tenham acesso a ela, raramente acontece. Debater o modo pelo qual o capitalismo se apropria dos símbolos de uma cultura, esvaziando-a de sentido, também não.
Do mesmo modo, raramente vemos uma discussão sobre o modo pelo qual os muros sociais construídos são escamoteados por uma romantização de uma cultura única, que, na verdade, serve para manter o sujeito que produz a cultura à margem, enquanto os grupos privilegiados enriquecem e mantêm a segregação social.
Se for para fazer esse debate, concordo. Se for para tentar ridicularizar uma mulher negra extremamente talentosa, peço para que a autora do boicote repense seu racismo.