‘Antes de mudar a política de drogas, temos que aprender tudo sobre elas

Para neurocientista Carl Hart, da Universidade de Columbia criminalização das drogas mantém sistema discriminatório e ignorância sobre tema. “As pessoas não entendem o que as drogas fazem”

por Gabriel Valery, da RBA 

“As pessoas não entendem o que as drogas fazem, por isso são contra que outras usem. Tudo que ouvimos sobre drogas e sobre os usuários são informações erradas. Antes de mudar a política de drogas, temos que aprender tudo sobre elas. Não temos como pensar em melhorar o trato às drogas sem conhecimentos básicos”. A avaliação é do neurocientista e professor da universidade de Columbia, em Nova York, Carl Hart.

Hart esteve nesta quarta-feira (13) na organização comunitária Aparelha Luzia, no bairro de Campos Elísios, região central de São Paulo, onde participou de um encontro organizado pelo coletivo de jovens moradores de favelas Movimentos. Primeiro negro a ocupar tal cadeira na instituição, o pesquisador é um dos nomes mais importantes do mundo no estudo dos efeitos das drogas no indivíduo, bem como em políticas públicas sobre o tema.

Conhecido por contrariar o senso comum, ele defende que é importante conhecer os efeitos das drogas sobre os usuários para se conduzir políticas públicas eficazes sobre o tema e critica a forma com que a sociedade e o poder público, tratam o tema. Um dos maus exemplos citados é o da chamada Cracolândia, a poucos metros de onde se realizava o encontro.

“Todos aqui em São Paulo já ouviram falar de um lugar chamado Cracolândia. Achamos que usar crack é a única coisa que essas pessoas fazem neste lugar, mas isso não é verdade”, afirmou. Hart explica que a opinião pública não sabe o que levou estas pessoas a estarem ali, mas que alguns aspectos são certos. “Sabemos que todos ali são pobres e carentes. Sabemos que muitas pessoas ali precisam de tratamento psiquiátrico. Também sabemos que a maioria dos que estão lá são negros”, disse.

“Quando políticos usam o termo (Cracolândia), isso significa que eles não têm responsabilidade por estes indivíduos serem pobres, não terem o mínimo de educação, terem problemas psiquiátricos sem assistência e sofrerem de preconceito racial”

“Esse termo (cracolândia) não nos permite tratar do problema real dessas pessoas. Então, quando os políticos usam esse termo, isso significa que eles não têm responsabilidade por estes indivíduos serem pobres, não terem o mínimo de educação, terem problemas psiquiátricos sem assistência e sofrerem de preconceito racial”, afirmou o pesquisador norte-americano.

Preconceito e criminalização

A questão do preconceito no país, para Hart, tem papel central na criminalização das drogas, bem como é um gatilho da violência. “Penso nas ferramentas utilizadas para que negros continuem à margem da sociedade, como as políticas de drogas. Elas são aplicadas de forma seletiva, para garantir que a sociedade continue desigual, como ela é. Nos Estados Unidos, isso não é diferente, a política de drogas é uma ferramenta para levar cidadãos negros para a cadeia.”

Trabalham com esses instrumentos de opressão ao povo negro e pobre, de acordo com o pesquisador, tanto setores da política, quanto parte da mídia. “Atingimos, neste país, um nível muito sofisticado para os políticos não atenderem os problemas dos pobres. Veja, 70% da população não tem o mínimo de educação sobre drogas. Tem algo muito errado nessa sociedade. Ora, a maioria dos usuários de drogas não são dependentes, são pessoas como eu, que vão ao trabalho todos os dias, cuidam de suas famílias e contribuem para a sociedade”, disse.

“Então, a mídia e os políticos estão tentando tapar o sol com a peneira. Colocam toda essa besteirada no noticiário, subjugam os pobres. Temos fraudes em outros lugares também, como religiosos que perpetuam a discriminação. Na Bíblia não se fala nada sobre farmacologia. São fraudes. Tem Organizações não Governamentais que são fraudes também. Eles falam que vão educar a população com mágica e dança, mas isso não é educação. Isso perpetua o ciclo da opressão. Educação, na verdade, é quando a pessoa questiona a sociedade onde ela está sendo educada. Quando pensamos em educação, temos que ter certeza que isso implique em questionamento.”

“Religiosos perpetuam a discriminação. A Bíblia não fala nada sobre farmacologia”

Uma saída

Para Hart, a educação sobre as drogas longe do preconceito alimentado pelo senso comum é a base para a mudança no paradigma que implica em violência urbana. Entretanto, existem ações imediatas, afirma o pesquisador. “Temos que fazer com que ninguém mais possa ser preso por posse para uso pessoal. Podemos chamar isso de descriminalização. É um passo simples e até tolerável para políticos de direita”, disse.

Então, completa, vem a regulamentação. “Se simplesmente descriminalizarmos, não estaremos atuando sobre a saúde dos usuários. Para mantê-los livres de ‘impurezas’, podemos regulamentar com o governo, assim como fazem com o álcool. Podemos fazer a mesma coisa com a cocaína e com a maconha. Nos Estados Unidos já vemos luz neste sentido e podemos fazer isso aqui também”, sugeriu.

“Agora, o Brasil é um dos países mais violentos do mundo. Se estamos preocupados com a violência, a única forma de tratar isso é regulamentar as drogas. A descriminalização não vai trazer isso, será preciso a regulamentação. Isso pode ser difícil para algumas pessoas, então, é importante a educação da maneira certa. Quando nós mudarmos a política de drogas, ainda vamos ter pessoas que continuarão excluídas. A política de drogas é uma ferramenta que a sociedade usa para marginalizar, mas existem outras muitas. Se quisermos evoluir como sociedade, temos que garantir educação e oportunidades”, concluiu.

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