“Ao invés de estarem promovendo a segurança, o que está sendo feito é a promoção da insegurança”

A frase sobre a atuação da PM é de Juliana Borges, uma das maiores especialistas sobre enfrentamento à violência, que indica nesta entrevista estratégias para combatê-la

FONTEkatiamello@geledes.org.br
Foto arquivo Geledés

Geledés– O arremessamento de um homem por policiais em uma ponte e um outro policial executando um jovem negro na saída de um mercado escancaram a escalada de violência por parte da Polícia Militar do Estado de São Paulo desde a posse do governador paulista Tarcísio de Freitas, em 2023, e refutam a ideia de casos isolados. Como entender essa escalada que impacta, sobretudo, a população negra?

É isso mesmo. Esses casos não são casos isolados e fazem parte de um processo que vem acontecendo na Polícia Militar de São Paulo, justamente desde a posse do agora governador Tarcísio de Freitas. Quando ele indicou o Secretário de Segurança (Guilherme Muraro) Derrite, houve uma mudança no coronelato da PM de São Paulo. Havia uma série de procedimentos que estavam sendo feitos, muito também pela incidência da sociedade civil, das organizações da sociedade civil junto às Forças de Segurança do Estado de São Paulo, de que houvesse procedimentos para o avanço de carreira de internos na corporação. Em geral, havia um coronelato, coronéis que faziam parte da estrutura dirigente, que haviam passado por diversos espaços dentro da corporação, por diversas tarefas que tinham sido cumpridas, com a formação desses policiais e uma série de outros procedimentos. Essa mudança que houve nessa estrutura dirigente da polícia trouxe perfis mais jovens, com menos carga de experiência em relação a esse antigo coronelato. Muitos são advindos de uma mesma força interna da corporação, e muitos são mais ligados ao atual Secretário de Segurança. Isso dá um recado para a base da corporação, ainda que não seja uma política explícita, de ampliação da violência. É um recado para a base da corporação, de atuação nas ruas, e que exerce essa atividade policial mais cotidiana e mais próxima das comunidades. Então, a partir de um discurso de endurecimento, de enfrentamento ao crime em São Paulo, tem-se a justificativa para essa intensificação da violência, para essa escalada da violência, por parte principalmente da Polícia Militar em São Paulo. 

O que a gente percebe é que não é uma questão só da PM de São Paulo, e é bom que isso seja trazido, porque a violência é uma questão endêmica no Brasil, que faz parte de nossa fundação. Ela está carregada ainda com muita intensidade na execução da atividade policial das forças de segurança, não só as policiais, mas as forças de segurança em geral no país. Então, estamos percebendo que há um endurecimento da atuação policial, justificada no enfrentamento ao crime organizado, mas com uma ação que entende que endurecer, que o exercício da violência é que trará alguma sensação de segurança para a população e o efeito é o inverso.

Tem uma população se sentindo cada vez mais insegura. Então há comentários nas comunidades, que já não tinham tanto, de pensar o horário que vai chegar em casa, de pensar nas vias que vão andar. É uma conversa que retorna às nossas comunidades, nas periferias, porque ao invés de se estar promovendo segurança, o que está sendo feito é a promoção da insegurança, em geral direcionada a uma parcela étnico-racial da população.

Geledés- Organizações do movimento negro convocam a sociedade para uma manifestação nesta quinta-feira, 5, pelo fim da violência policial que vitima, em sua maioria, corpos negros e periféricos em São Paulo e país. Porém estes atos carecem de uma maior participação da sociedade brasileira. O que falta para que nossa sociedade como um todo proteste contra essas barbaridades que ocorrem à luz do dia?

Em geral, sobre essa questão das manifestações que o movimento negro convoca e de uma participação maior da sociedade, eu acho que, para falar disso, a gente tem que falar também do que é a construção desse criminoso, desse inimigo público interno que precisa ser combatido. A população tem um estereótipo de quem é essa figura criminosa, construída historicamente no Brasil e que tem como consequência uma menor empatia. 

Percebemos que há maior mobilização da sociedade quando essa brutalidade cotidiana das periferias espraia para os bairros nobres da cidade onde há uma população majoritariamente branca ou majoritariamente não negra. Aí há comoção social, ganha a atenção da mídia, das colunas, dos jornais, ganha a dimensão do debate público. Há uma insensibilidade ao sofrimento que é infligido contra a população negra porque há esse histórico estereótipo construído de quem são as figuras perigosas que devem ser combatidas. E não podemos deixar de vista também que a sociedade brasileira, em geral, é historicamente conservadora. E que há um histórico de demanda de mais policiamento em situações de crise, de escalada de violência. Não pensando que são outros fatores que são mais importantes no combate a esse estado de violência. 

Somos um país que surge da violência, que tem na violência uma expressão do fazer política. Fazer política é uma dimensão violenta, a política é violenta em si. Temos um histórico de ser uma sociedade violenta e de continuar reproduzindo fórmulas que não estão dando certo. Então mais armamento, mais ações de repressão, mais policiamento ostensivo, mesmo que isso não esteja dando resultado. Se entende que se não está dando resultado, precisa ampliar esse tipo de ação, quando é justamente o inverso. A garantia de direitos, a diminuição das desigualdades, são esses os elementos. É pensar planejamento urbano, redistribuição de terras e garantia de moradias nos centros urbanos, com qualidade de vida nesses centros. Não estou dizendo que esses fatores por si só dão a resposta, mas eles têm um peso muito grande quando pensamos na diminuição da violência na sociedade.

Pensar também um outro modelo de polícia, um outro modelo de policiamento, é melhor colocar nesses termos. Isso é fundamental e não é só uma demanda que a sociedade civil faz historicamente por controle externo da ação policial, por parâmetros técnicos de atuação policial, por investimento em mais inteligência e acolhimento às vítimas do que em ações repressivas e ostensivas. E digo que não só da sociedade civil, porque até atores de dentro dessas corporações conseguiram compreender que é preciso ter uma mudança no modelo das forças de segurança que precisam estar atualizadas ao país do pós-Constituição de 1988, que estabelece o Estado Democrático de Direito no Brasil.

As forças de segurança têm que promover direitos, garantir a proteção da vida. E hoje, infelizmente, não acontece (a escalda de violência) só no Estado de São Paulo, mas em outros. Ela está se espalhado pelo Brasil inteiro e há forças que têm atuado na intensificação desses conflitos e da violência.

Geledés – Em outubro deste ano, policiais militares passaram a ser investigados por invadirem um velório e agredirem a família de um jovem morto em SP. A corporação instaurou inquérito, mas em muitos casos não há punição. O governador paulista, em março deste ano, minimizou os casos de violência denunciados à ONU, chegando a dizer “Estou nem aí”. Inclusive, há manuais operacionais dentro da Polícia Militar que norteiam as atividades policiais, mas as normas estabelecidas nesses manuais não estão sendo seguidas pelos policiais em campo. O que se pode esperar desta gestão e como fazer com que ela seja transparente em suas ações?

Precisamos fortalecer mecanismos de controle externo da ação policial, ter um Ministério Público, que é a instituição do Estado, que faça essa fiscalização da atividade policial, das corporações policiais, das forças de segurança, que atuem de fato, convocando, pressionando e fiscalizando a atuação das forças de segurança. 

O Secretário de Segurança de São Paulo propôs a criação de uma ouvidoria interna da corporação, em um movimento, que, de alguma maneira, tem como objetivo enfraquecer a atuação da ouvidoria das polícias existentes no Estado de São Paulo, que é uma das ouvidorias mais antigas do Brasil, diga-se de passagem, que sempre teve uma atuação muito séria e de diálogo, não só com os movimentos sociais, mas com as universidades e com as forças policiais. Hoje, ela tem sido uma voz importante nesse controle externo da atividade policial, mas que esse controle externo precisa ser fortalecido. 

Precisamos criar e fortalecer mecanismos em que a sociedade civil possa participar dessa fiscalização e possa fazer discussões com transparência de ações e de normas efetivas para que sejam seguidas por policiais em campo. Mas também que possamos pensar em um novo modelo, formular junto a essas forças policiais, em um debate amplo com a sociedade civil, com a sociedade como um todo, e reformular esse modelo de policiamento que temos, o modelo das forças de segurança que temos. Isso não é falar de uma utopia, mas de possibilidades, porque já temos experiências sendo construídas em outros lugares, casos como de cidades nos Estados Unidos em que há uma polícia municipal, uma polícia estadual. Há cidades que resolveram dissolver o departamento de polícia para reformular o modelo de policiamento para aquela cidade como medida de transformação desse estado atual de violência e de como as forças de segurança estavam sendo instrumentalizadas para a manutenção de desigualdades e do quadro de violência. 

Geledés – Em novembro deste ano, um PM matou com 11 tiros pelas costas o jovem negro Gabriel Renan da Silva Soares, de 26 anos, que havia furtado material de limpeza. O agente policial afirmou em depoimento que agiu em legítima defesa. O que poderá acontecer a partir do ano que vem quando o modelo atual de câmera na farda será substituído por um que não gravará mais vídeos ininterruptamente?

Essa questão das câmeras corporais é uma questão que a sociedade civil tem batido, tem tentado fazer uma incidência forte para haver um modelo de câmeras que as defensorias tenham acesso, que possa ser exercido um controle externo pela sociedade da atuação policial e que elas sejam no modelo de gravação ininterrupta. Diante dessa situação de escalada de violência, o único mecanismo que a gente conseguiu criar um consenso na sociedade são as câmeras corporais, que trazem segurança tanto para o cidadão quanto aos próprios policiais em ação.

Acho importante de ser frisado, porque em geral a discussão é feita de como essa seja apenas uma demanda da sociedade, como se fosse para se proteger da ação policial. Mas ter a câmera, a gravação ininterrupta do trabalho dos policiais, também os protege, porque eles vão poder, inclusive, apresentar quais foram os procedimentos que adotaram em determinadas abordagens, quais foram as ações por eles feitas. Esse é um mecanismo de aprimoramento e de efetivação do Estado Democrático de Direito. É importante como efetivação das resoluções dos artigos presentes no Sistema Único de Segurança Pública, das atribuições que são dadas às forças de segurança na Constituição Federal.

Então é importante colocar que demandar câmeras corporais não é limitar a ação policial. Pelo contrário, é aprimorar as condições de trabalho desses policiais e garantir também segurança para os cidadãos que são atendidos por esses servidores públicos, por esses agentes de segurança. Na verdade, é qualificar o trabalho e a ação policial.

Temos que sair dessa discussão de quem é contra ou não, mas discutir se essa é uma ferramenta que vai servir para aprimorar e de fato implementar uma polícia do Estado Democrático de Direito. É sobre isso que estamos falando. Sem esse mecanismo, e não sou futuróloga, e diante desse quadro de escalada da violência, o que veremos é um aumento ainda mais intenso dessa violência que pode impactar não só a população, com aumento da letalidade policial, mas também aumento da vitimização policial, deixando esses policiais da linha de frente, que estão nas ruas todos os dias, desprotegidos e sujeitos a alguma situação que os deixe em perigo.

Geledés – Outra questão relevante, ainda em relação às autoridades do Estado de São Paulo, são as violações de direitos humanos em unidades prisionais e socioeducativas. Um farto relatório divulgado em outubro deste ano pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), aponta casos de tortura, fome e superlotação, além de uso inadequado de armas menos letais e trabalho análogo à escravidão. O documento já foi apresentado ao governo paulista, ao Tribunal de Contas, Ministério Público, Tribunal de Justiça. Porém as denúncias seguem. Qual deveria ser a atuação desses órgãos?

O Ministério Público é quem tem essa função fiscalizadora, de demandar investigação e de averiguar denúncias. Então a atuação desses órgãos em relação a atuação da sociedade civil é dar encaminhamento a essas denúncias apresentadas para que elas sigam ao Tribunal de Justiça. Essa deveria ser a atuação de um Estado que tem a tutela dessas pessoas que estão em situação prisional. E o Estado precisa apresentar contas de como está sendo desenvolvido ou não esse processo de ressocialização o que teoricamente seria o que esse modelo se propõe a fazer. 

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