Em abril de 1978, um jovem negro foi acusado pelo roubo de frutas de um feirante. Robson Silveira da Luz, de 21 anos, casado e pai de família, foi barbaramente torturado pela polícia nas dependências do 44º Distrito de Guaianases, na zona leste de São Paulo, e acabou morto.
Naquele mesmo ano, quatro garotos negros, atletas da equipe juvenil de vôlei do Clube de Regatas Tietê, foram barrados no clube. Ao reclamar do acontecido, o técnico teria ouvido de um dos diretores: “Se deixar um negro entrar na piscina, cem brancos saem.”
Em resposta a esses dois episódios, um grupo de jovens negros fundou no dia 18 de junho de 1978 o Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial. Posteriormente, rebatizado para acrescentar no nome a palavra Negro — uma sugestão do histórico ativista negro Abdias do Nascimento (1914-2011), para que ficasse claro quem eram os protagonistas da luta contra a discriminação.
Em meio à ditadura militar, a juventude negra teve a ousadia de questionar o mito da “democracia racial” então vigente e ir às ruas dizer que o racismo era um problema estrutural que precisava ser enfrentado e que a questão racial seria central à luta democrática.
Esse movimento retomava a tradição de organizações como a Frente Negra Brasileira, primeira associação de ativismo negro do país, na década de 1930, e o Teatro Experimental do Negro, criado por Abdias do Nascimento nos anos 1940.
Em 7 de julho de 1978, o Movimento Negro Unificado (MNU) reuniria milhares de pessoas nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, num ato público contra o racismo.
Essa manifestação histórica, e outras realizadas nos meses e anos seguintes, foram registradas pelas lentes do fotógrafo Jesus Carlos Lucena Costa. No mês da Consciência Negra, a BBC News Brasil resgata essas fotografias — algumas delas, nunca antes publicadas.
“Toda luta é um processo. Conhecer a luta do MNU, conhecer a história, é permitir a continuidade do processo. Quem começa a luta hoje, começa de um outro patamar”, diz Regina Lucia dos Santos, militante do MNU há 27 anos.
Fotografia e a possibilidade da memória
Hoje com 71 anos, Jesus Carlos tinha 29 naquele 1978 de fundação do MNU. Durante a ditadura militar, o fotógrafo trabalhava com veículos da imprensa alternativa, como os jornais Em Tempo, Repórter, Opinião e Movimento.
Desde 1974, sob o governo Ernesto Geisel, o Brasil vivia o início do seu processo de redemocratização, uma abertura “lenta, gradual e segura”, segundo o próprio general.
A sociedade civil passava por um momento efervescente, com as primeiras passeatas estudantis desde 1968 (ano de endurecimento da ditadura militar, quando foi decretado o Ato Institucional Nº 5), a rearticulação do movimento sindical, dos movimentos contra a carestia, de trabalhadores rurais, mulheres, homossexuais e o início da recuperação partidária.
“Como fotógrafo, havia consciência da importância daquele trabalho. Você estava registrando a realidade, mas também colaborando para aquele processo fotografado”, diz Jesus Carlos.
“Uma questão que para mim já existia naquela época, é a de que, ao fotografar, você estava não só registrando aquele momento, mas levando em conta a possibilidade da memória.”
Naquele julho de 1978, Jesus Carlos foi pautado para cobrir a primeira manifestação de rua do MNU pelo jornal Em Tempo, ao lado do também fotógrafo Ennio Brauns.
“Naquela época, já existia algo de movimento negro. Por exemplo, os bailes black. O pessoal se encontrava na sexta-feira à noite no Vale do Anhangabaú, embaixo do Viaduto do Chá. Aquele monte de pessoas com cabelo black power, homens e mulheres com aquelas roupas e colares. Aquilo foi um embrião do movimento negro”, lembra Jesus Carlos, que lamenta não ter fotografado esses encontros.
“Só depois me dei conta do que estava realmente acontecendo.”
Em julho de 1978, nas escadarias do Municipal, já não havia mais dúvidas.
“Estava acostumado desde 1976 a fotografar movimento sociais, mas ali em 1978 me deparei com algo que nunca tinha visto. Foi ali que me deparei com aquele mundo negro que não conhecia. Aquilo me chamou muita atenção e me entusiasmou muito”, conta.
“A importância daquele momento, vemos até hoje no dia a dia”, avalia Jesus Carlos.
“Uma coisa precisamos ter clara: a situação do negro continua muito grave. Houve mudanças, houve conquistas, mas o racismo estrutural continua muito forte”, observa.
“Precisou a luta pelas cotas para fazer a pessoa de cor negra ter acesso à universidade. Mas continua a diferença salarial entre homens e mulheres, negros e brancos. Você vai nos bairros de classe média alta, a população é branca. O negro que você encontra lá é o vigia da rua.”
Movimento Negro Unificado, resistência nas ruas
Aos 74 anos e 44 de militância no MNU, Milton Barbosa se recupera bem da retirada de um câncer de próstata no primeiro semestre deste ano. Passada essa batalha, está de volta à luta com a qual está mais acostumado: contra a desigualdade racial no Brasil.
Barbosa lembra que o grupo formado por ele, José Adão, Rafael Pinto e outros ativistas negros já conversava sobre a necessidade de algo que desse conta do enfrentamento da questão racial, mesmo antes dos dois episódios que resultaram na criação do MNU.
“Nas nossas discussões, fomos descobrindo que umas das questões fundamentais era o enfrentamento ao racismo. Mas era um processo muito difícil, porque era um país racista, mas mesmo os setores progressistas não viam a questão racial como uma das prioridades. Então, percebemos a necessidade de organizar a população negra para estar à frente desta luta.”
Robson Silveira da Luz, o jovem morto após tortura policial, era primo de Rafael Pinto. E o caso dos rapazes barrados no Clube Tietê chegou ao grupo através do jornalista Hamilton Cardoso (1953-1999), então colaborador na seção Afro-Latino-América do jornal Versus.
“Todo mundo acha que o MNU foi fundado no 7 de julho, que é o ato das escadarias no Municipal, mas não foi. Foi fundado em 18 de junho na sede do Cecan [Centro de Cultura e Arte Negra] e ali eles decidiram fazer um lançamento público, apesar da ditadura militar”, lembra Regina Lucia dos Santos, companheira de Milton Barbosa há 26 anos.
Enquanto o ato estava sendo preparado, em 1º de julho, o operário negro Nilton Lourenço foi morto por um policial na Lapa, lembra Barbosa.
Nesse contexto, o documento de lançamento do MNU traz como pontos centrais o caráter racista da violência policial no Brasil, o racismo na educação e nos meios de comunicação, a questão das empregadas domésticas e o apoio aos negros da África do Sul, então ainda sob o regime de segregação do racial do apartheid.
Legados e desafios
Para Barbosa, um dos legados do MNU foi a percepção do movimento de negro de que era preciso estabelecer prioridades no enfrentamento à desigualdade racial. Já Regina avalia que um dos principais resultados do movimento foi tirar o racismo da invisibilidade.
Ela também enumera conquistas como Lei 10.639/1996, que estabeleceu o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas; o avanço da produção intelectual negra; e a conquista de espaço nos meios de comunicação, um espelho para a juventude negra.
“Há coisa de 15, 20 anos atrás, nossa juventude morria assassinada pelo Estado nas periferias do Brasil todos os dias. Mas o próprio negro da periferia não enxergava que o motivo daquelas mortes era sua negritude. Hoje os movimentos de mães de vítimas colocam isso claramente.”
Regina avalia que o combate ao genocídio da juventude continua sendo uma missão do movimento negro. Mas ela defende que um desafio que se impõe atualmente é a necessidade de se combater o que ela chama de “epistemicídio” negro — o apagamento das contribuições intelectuais dessa parcela da população — e de promover o chamado letramento racial.
“Existem dois tipos de racistas no país. O racista que é racista mesmo, por escolha ideológica, para defender os seus privilégios e manter a desigualdade. E o racista por ignorância, porque não se coloca a contribuição, a importância e a resistência negra na história desse país”, defende a militante do movimento negro.
“Por desconhecer essa história, as pessoas introjetam o racismo. Então letramento racial é oferecer essa história, oferecer essa discussão, ela alcançar toda a sociedade, para que os racistas por ignorância deixem de sê-lo.”
A geração seguinte
Tanto Jesus Carlos, como Regina e Miltão (como Milton Barbosa é mais conhecido), veem nas diversas organizações do movimento negro atual uma continuidade da luta do MNU.
“Há uma continuidade e uma diversificação. Com o MNU, surge um movimento social que vai fazer o enfrentamento mais direto. Mas muitas organizações surgem daí, e também outras formas de atuação, como o advocacy [atuação para influenciar a formulação de políticas e alocação de recursos públicos] e as ONGs, que fazem um outro papel. É importante essa diversidade e a capilaridade no combate ao racismo na sociedade”, diz Regina.
Eliane Leite Alcantara Malteze, sócia-fundadora da consultoria Uzoma Diversidade, Educação e Cultura, é parte dessa geração que pegou o bastão do MNU no combate à discriminação.
Ela é filha de Antonio Leite, que em 1972 foi um dos fundadores do GTPLUN (Grupo de Trabalho de Profissionais Liberais e Universitários Negros) e em 1978 participou da fundação do MNU.
“Meu pai era mineiro, nasceu em Muzambinho. Ele veio para São Paulo com a mãe e os cinco irmãos, todos analfabetos, com o sonho de todo jovem negro de ser jogador de futebol. Com pouca formação, ele foi trabalhar no Departamento de Águas e Esgoto de São Paulo, que depois vira a Sabesp, cavando buraco na rua”, lembra Eliane.
Antonio Leite casou, teve três filhas e foi estudar já adulto. Fez Mobral (programa de alfabetização de jovens e adultos extinto em 1985), Ensino Fundamental, Médio e se formou em Ciências Sociais. Estudando, ascendeu na carreira pública e depois teve empresas próprias.
Em 1972, ajudou a fundar o GTPLUN junto com a médica Iracema de Almeida (1925-2005), grupo que atuava na colocação de profissionais negros no mercado de trabalho. Em 1978, com a comoção pela morte de Robson Silveira da Luz, Leite se soma à manifestação nas escadarias do Teatro Municipal, pedindo o fim do racismo e da morte dos jovens negros.
Seguindo a orientação do pai sobre a importância de estudar, Eliane formou-se matemática e tornou-se professora e depois diretora de escola. Suas irmãs se formaram em Direito e Ciências Contábeis.
Há cerca de 15 anos, a filha de Antonio Leite começou a resgatar na sua própria atuação a trajetória do pai de combate ao racismo.
“Sentimos a necessidade voltar às nossas origens e a essa história do meu pai, que sempre me empoderou. Então retomo isso na Uzoma, para tratar da questão da falta de mulheres negras em espaços de liderança no mundo corporativo.”
A Uzoma presta consultoria a empresas para promoção da diversidade, dá treinamento a lideranças para a inclusão e atua no processo de ação afirmativa para contratação de pessoas negras, além de oferecer programas de desenvolvimento a jovens negros para que eles possam ocupar cargos de liderança.
“Uzoma significa ‘siga o bom caminho’. Então estamos seguindo o bom caminho da diversidade e resgatando essa história de quem veio antes da gente, como meu pai. Essa luta não é de hoje. Desde Zumbi, há muitos outros que lutaram no combate ao racismo e estamos continuando essa luta, pois somos fortalecidos pela nossa história.”