Do fiu fiu à misoginia: desfilando pelo Carnaval, os homens que não amavam as mulheres
Tem alguns temas que são muito chatos.
por Mariana Mazzini no HuffPost Brasil
“Vocês, feministas, não se cansam de falar de violência?”, provocava um conhecido, em um desses dias que correm soltos por aí.
“Sim, a gente se cansa”, respondi. “Eu acho muito chato falar de violência. Mas pior ainda é sofrer calada. Legal vai ser quando a gente puder parar de falar dela, porque não tem mais nenhum homem praticando uma violência contra uma mulher”, completei, visivelmente mal-humorada.
É mais ou menos assim que me senti quando vi circulando o material da campanha “#CarnavalSemAssédio”, parceria da revista AzMina, do #AgoraÉQueSãoElas, Vamos Juntas?, dentre outras mulheres e coletivos feministas.
Me lembrou um pouco a campanha “Chega de Fiu Fiu“, criada pela Think Olga. Em ambos os casos, uma mulherada tão bacana envolvida que eu não preciso nem conhecer, pra já considerar “pacas”.
Mas, ao mesmo tempo que é delicioso ver mulheres se organizando para pautar os nossos direitos rumo a uma vida sem violências, inclusive durante o Carnaval, acho um pouco cansativo ter que colocar a fantasia, passar a maquiagem e, antes de sair de casa, ter uma única certeza sobre como serão os próximos dias: eu e todas as minas que estaremos na rua vamos nos deparar com algum tipo de assédio. Seja conosco, seja com outras mulheres. A violência contra as mulheres estará tão presente pela folia no Brasil quanto a serpentina e o confete.
Isso também me lembrou que, no ano passado, no meio de um bloquinho que desfilava pelo centro de São Paulo, com uma roupa tão curta quanto o calor e a folia merecem, fui abordada por um homem que passava pela rua lateral ao Teatro Municipal. Ele me olhou e disparou: “você pode até ser uma vadia, mas a gente vai te f**er mesmo assim”.
É daqueles momentos que, de um segundo para o outro, a gente é teletransportada da alegria plena do carnaval à dura realidade da quarta-feira de cinzas. A qualquer momento eu poderia estar sozinha, andando pelo centro da cidade. E um dos membros desta entidade secreta poderia estar à espreita. E poderia fazer valer a promessa.
Eu sempre achei que “cantada” não tem nada a ver com um jogo de sedução, mas sim com a reafirmação da masculinidade. Eu nunca conheci uma mulher que me dissesse: “nossa, adoro tomar uma cantada quando estou esperando o ônibus”. Até porque a maior parte das cantadas que a gente escuta não são do tipo: “que sorriso bonito! Espero que você carregue ele contigo sempre. Tenha um bom dia!”. Mas fazem parte de um pacote que inclui “‘que buc***uda’, ‘quero comer teu c* ou ‘vou te f**er'”.
Considerando que poucas pessoas devem achar que usar qualquer uma dessas expressões para começar uma conversa com uma desconhecida seja algo sexy, penso que nenhum homem esteja esperando, como resposta, algo como: “Claro! Quando a gente se encontra? Levo um vinho?”. Até porque a resposta esperada não vem de quem recebe a cantada. Mas dos olhares de reconhecimento dessa masculinidade, socialmente atestada. Inclusive dele mesmo. Ao gritar “gostosa” no meio da rua, o que um homem está querendo dizer é: “eu sou muito homem. E todo mundo vai saber disso”.
A questão é que essa angústia de afirmar a masculinidade combina-se, como queijo e goiabada na tapioca, com uma violenta submissão das mulheres a um mundo em que a autonomia das vontades só vale para a turma do cromossomo Y. A sexualidade, expressa dessa forma, é uma declaração de ódio às mulheres. É a misoginia da rua lateral do Teatro Municipal.
E não importa que ela seja atenuada por palavras mais brandas. Gracejos ditos em uma rua deserta para uma mulher desconhecida e sozinha não soam como agrados. Soam mais como um aviso, como quem diz: “você não conhece a regra? Não pode andar por aqui, desacompanhada. Só eu posso. E eu ainda posso fazer o que eu quiser com você”. O “te chupava toda” significa “você não pode usar a roupa que você quiser. Você é mulher”.
Afirmar-se como sujeito significa, muitas vezes, negar o outro. Ou, pelo menos, demarcar muito bem os limites em que o outro pode existir. As ruas e os horários que podem ser frequentados e as roupas permitidas. Não acho exagero pensar que ser mulher nas grandes cidades é viver quase em um estado de toque de recolher permanente.
E, no caso do Carnaval, há ainda um agravante. A “cantada” tem licença poética para ganhar formas ainda mais criativas, indo para além das palavras. O que me lembra um outro episódio carnavalesco, em que, ao enfrentar uma mão que corria muito livremente pelas minhas pernas, sem nenhum consentimento da dona delas, recebi como resposta: “Você não sabe o que é Carnaval?”.
Os anos passaram e, com eles, esses carnavais. Um ano depois, contudo, eu não esqueci a ameaça da rua lateral do Teatro Municipal. Acho que ele também não. Até porque ele não disse: “eu vou te f**er”. Ele disse “a gente vai te f**er”. Parecia falar em nome de um coletivo, um clube, que poderia ter como membro também o rapaz de mãos escorregadias. E tantos outros. Uma espécie de “acadêmico dos homens que não amavam as mulheres”, que desfila, impunemente, por todas as ruas e avenidas no Brasil, com sua fantasia de misoginia.
Material da campanha #CarnavalSemAssédio está disponível aqui. E você pode conhecer mais sobre a campanha Chega de fiu fiu clicando aqui.