Bianca Santana e a militância do associativismo negro no Brasil

Em nova edição atualizada, livro 'Quando me Descobri Negra' é pauta para novo marco racial

FONTEFolha de São Paulo, por Tom Farias
Bianca Santana, jornalista, cientista social e pesquisadora - Foto: Bruno Santos/Folhapress

Bianca Santana, além de uma escritora de reconhecido talento, é uma fina intelectual, no sentido latino da palavra, ou seja, a pessoa dotada de discernimento e compreensão —termo da mesma raiz da palavra inteligência.

É interessante puxar o assunto para esta seara, não só diante do seu posicionamento público político, seja à frente da direção executiva da Casa Sueli Carneiro —equipamento social de muitos méritos e serviços—, mas, e especialmente, por suas colocações críticas, sobre a realidade brasileira, urdidas em artigos para jornais e revistas e palestras proferidas em fóruns acadêmicos ou eventos literários.

Faz alguns anos Santana lançou um livro que tem mexido com o imaginário de um seguimento específico da nossa população, “Quando me Descobri Negra”, agora reeditado pela Fósforo, editora que vem fazendo um trabalho de entrega editorial dos mais surpreendes, em termos de qualidade, tanto no plano gráfico, quanto de conteúdo.

É o caso agora dessa nova edição do livro, que pode ser vista como manual de boas maneiras no comportamento racial de nós brasileiros —sejamos negros, brancos ou não brancos. Aliás, não brancos, fica a dica, como nova categoria social a ser estudada cientificamente como fator humano da nossa sociedade.

O livro de Santana não trata desse último assunto, em particular, mas é o caminho, através de sua experiência pessoal, onde deu os primeiros passos para seu autorreconhecimento e aceitação como tal, ampliado para o campo do gênero.

Da edição original da obra realizada em 2015 —portanto, há oitos anos—, até a data desta segunda, o Brasil e o mundo deram significativas reviravoltas e mudanças foram operadas no contexto de engajamento político, não só do movimento negro, mas da própria autora, que além de se “descobrir negra”, se descobriu grande escritora.

De lá para cá, publicou duas obras seminais —”Continuo Preta: a Vida de Sueli Carneiro”, de 2021, e “Arruda e Guiné: Resistência Negra no Brasil Contemporâneo”, de 2022— e um catatau de artigos e ensaios, abalos sísmicos sacudiram o planeta-vida.

Todos relacionados a crimes de ódio: do assassinato da socióloga e vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro, ao sufocamento de George Floyd, nos Estados Unidos, passando pela brutal morte do menino Miguel Otávio Santana da Silva, de cinco anos, a da garotinha Ághata Félix e de Kathlen Romeu.

Só para lembrar, Kathlen, de 24 anos, estava grávida e foi alvejada a tiro de fuzil numa “operação” da Polícia Militar, no bairro do Méier, subúrbio da chamada “Cidade Maravilhosa”.

O que tem a ver esses casos com o livro de Bianca Santana? Tudo! Todas essas pessoas eram de origem negra. Ou seja, tornar-se negra —e destaco aqui o protagonismo da ativista e psiquiatra Neusa Santos Souza, que dizia, em livro histórico, que saber-se “negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas expectativas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas.”

Bianca Santana percorre caminho que se assemelha à da trajetória de Neusa: reconhecer-se pelo fenótipo é talvez dos planos mais corajosos de vidas de mulheres como ela, numa sociedade, onde a questão de gênero, em especial de mulheres negras, se torna fator de alto risco, de baixa estima e desrespeito racial e social.

Ao abordar no seu depoimento os percalços passados por suas atitudes sociais e seus comportamentos —estar em lugares que não “eram para negros” ou simplesmente pela coragem de usar turbantes em ambientes estabelecidos como “refinados”—, Santana nos leva a refletir o quanto é doentio e perigoso assumir-se negra e tornar-se negra, na contramão do enfrentamento de “protocolos de segurança”, os quais ditam as regras de ir, vir e estar socialmente.

Portanto, “Quando me Descobri Negra” estabelece semelhante paradigma arrogado pela escritora mineira Carolina Maria de Jesus, que proclamava, pelos seus escritos: “Falavam que eu tenho sorte. Eu disse-lhe que eu tenho audácia.”

Bianca Santana é esta escritora e intelectual de audácia caroliniana. A coragem em expor ideias e posicionamentos a destaca entre nossas melhores pensadoras do associativismo negro brasileiro. Seu livro, agora, oportunamente, reeditado, chega-nos em hora crucial. Hora demarcada por um país em busca de novo marco civilizatório e humano.

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