Caso Miguel e pandemia expõem violações de direitos das domésticas

O mês de junho trouxe à luz os desafios que temos, como país, para romper definitivamente com a herança escravocrata ainda tão ligada ao trabalho doméstico. No dia 2 de junho, em Pernambuco, Mirtes Renata Santana de Souza, empregada doméstica, foi obrigada a romper o isolamento social determinado pelas autoridades sanitárias.

Não tendo com quem deixar o filho, o menino Miguel Otávio, de 5 anos, o levou ao trabalho, deixando-o aos cuidados temporários da patroa, enquanto teve que levar o cachorro da mesma para passear. Miguel morreu ao cair de uma altura de 35 m.

Miguel e Mirtes não conseguiram cumprir as recomendações das autoridades sanitárias porque a patroa e seu cachorrinho não puderam ficar sem a mão de obra da empregada, expondo-se a riscos de contágio, de adoecimento e de morte. E a morte chegou, pelo caminho do descaso, da negligência, evidenciando diversos abismos sociais instalados em nossa sociedade.

Ainda em junho, no dia 26, uma mulher de 61 anos cujo nome foi preservado, foi resgatada de situação análoga à escravidão na casa onde era trabalhadora doméstica há 20 anos, em bairro nobre da capital paulista.

De um lado, mulheres negras, pobres, trabalhadoras a quem a lei e o direito não alcançaram antes que tragédias acontecessem. Do outro lado, mulheres brancas de classe alta, empregadoras, que foram presas acusadas de crimes graves. Qual a resposta? Qual a reparação possível para Mirtes e para a senhora de 61 anos, cujo nome não foi divulgado? Ambas as patroas pagaram fiança e respondem processos em liberdade.

Além do clamor por justiça, os casos estarrecedores exigem nossa atenção para o fato da não aplicação dos direitos sociais de trabalhadoras domésticas.

Estudo recente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada) e da ONU Mulheres revela um aumento da situação de vulnerabilidade das trabalhadoras domésticas durante a pandemia. Neste período, a Fenatrad (Federação Nacional de Trabalhadoras Domésticas), segue registrando inúmeras denúncias de violações dos diretos destas profissionais, inclusive situações análogas ao trabalho escravo.

O trabalho doméstico é classificado, no contexto da pandemia, como atividade não essencial. No entanto, para muitas trabalhadoras domésticas, a realidade não é assim. Muitas são obrigadas, ou mesmo coagidas, a voltar ao trabalho, expondo-se e colocando em risco suas famílias e comunidades.

Mirtes de Souza, a mãe de Miguel, não tinha com quem deixar seu filho e nem teve a possibilidade de ficar em isolamento, desfrutando de seus direitos à saúde e à vida, e o mesmo aconteceu com seu filho. A senhora, em São Paulo, não teve quem a protegesse de violações a seus direitos mais básicos, alojada em uma espécie de depósito, sem acesso sequer a um banheiro para suas necessidades.

A pandemia da covid-19 segue revelando os abismos sociais e as violações de direitos humanos que atingem, todos os dias, milhões de brasileiras e brasileiros das populações mais vulneráveis do Brasil. Entre estes estão as trabalhadoras domésticas, a maioria mulheres negras moradoras de favelas e periferias.

Enquanto nós, como sociedade brasileira, não conseguirmos desnaturalizar as mazelas que nos atingem e diminuem, não haverá resposta inclusiva para a crise de saúde que estamos vivendo. Para que possamos enxergar e atender às necessidades reais de brasileiros e brasileiras, como estas mulheres, lançamos a campanha Nossas Vidas Importam.

Nela, exigimos, junto com outras 34 organizações e movimentos da sociedade civil organizada:

  • Que a garantia dos direitos humanos esteja no centro das ações e seja prioridade;
  • Que os grandes segmentos negligenciados da população brasileira recebam atenção direta das autoridades;
  • Que os planos de enfrentamento da pandemia alcancem a todas e todos, sem exceção, com acesso às medidas necessárias para a prevenção e cuidado.

Diante da emergência de saúde pública que se estabeleceu no país, é urgente que a defesa da vida de todas a todos seja prioridade. Para as trabalhadoras domésticas, esta é a melhor maneira de comprovar que suas vidas importam.

 

*Cleide Silva Pereira Pinto, presidente do Sindicato de Trabalhadoras Domésticas de Nova Iguaçu e integrante da Fenatrad (Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas)

Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional Brasil

Lúcia Xavier, coordenada da ONG Criola

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