“Ser escritora não rompe com o imaginário em relação às mulheres negras”
por Pedro Nogueira Ribeiro e Mariana Pitasse no Brasil de Fato
De fala firme e cuidadosa, a escritora Conceição Evaristo, 71 anos, hipnotiza olhares enquanto conta um pouco de sua trajetória à reportagem do Brasil de Fato, durante o 2° Festival Internacional da Utopia, em Maricá (RJ). Escritora desde menina, Conceição só teve as primeiras histórias publicadas aos 44 anos, recepcionadas pelos movimentos sociais, especialmente o negro. A notoriedade do grande público veio ainda mais tarde.
Hoje com seis livros publicados, prêmios de literatura conquistados e sendo homenageada inúmeras vezes, a escritora explica que sua história é uma exceção à regra em um país marcado pelo racismo estrutural.
“Eu represento uma minoria enquanto pessoa negra que está em um determinado espaço, que foi sempre de uma grande maioria branca. Se você pensa em uma autoria brasileira, você vai pensar em uma autoria masculina, depois feminina branca e, por último, pensar em uma autoria negra de homens e só depois de mulheres”, expõe.
E, ainda que ocupe um lugar de reconhecimento no mundo das letras, Conceição garante que não escapa do imaginário de racismo construído diariamente em torno das mulheres negras.
“Eu experimento uma sensação conflitante. Ao mesmo tempo que a minha história pessoal me dá essa alegria, é uma história que não se desgarra do coletivo, eu não tenho, enquanto mulher negra, nenhuma ilusão de que o imaginário que as pessoas projetam sobre mim é o imaginário que dá o lugar de escritora, a não ser para quem me conhece”, acrescenta.
Neste ano, em mais um movimento de resistência, Conceição registrou sua candidatura à cadeira de número sete da Academia Brasileira de Letras (ABL). A decisão foi uma resposta à mobilização iniciada pela internet por membros de diversos movimentos sociais. Os abaixo assinados pedindo por Conceição Evaristo na ABL já passam de mais de 50 mil assinaturas.
“Na história da ABL nunca teve uma mobilização assim, tão grande, de um público tão diverso. Esse lugar que a literatura está me conferindo é um lugar que me alimenta muito mais do que qualquer prêmio. Eu escrevo e tenho certeza de que as pessoas me lêem e quem escreve quer ser lido”, afirma.
Confira a entrevista na íntegra.
Brasil de Fato – O que representa, enquanto movimento de resistência, a candidatura à cadeira da Academia Brasileira de Letras?
Conceição Evaristo – Essa candidatura surge como algo espontâneo. Entre nós mesmos, as pessoas brincavam que o meu próximo lugar seria na ABL. Quando foi lançada a campanha eu só tomei conhecimento quando uma jornalista me ligou me perguntando e a campanha já estava acontecendo. Eu não sabia. Na verdade, fui incentivada por essa manifestação que já estava havendo. As pessoas foram me dando a coragem. Para se candidatar à Academia é preciso que seja brasileiro nato e que tenha um livro publicado, eu sou brasileira nata e tenho seis livros publicados. A partir do momento em que a literatura que produzo já tem um lugar dentro da literatura brasileira, eu acredito que eu estou dentro do que a academia pede. Como afirmei antes, todo lugar da nação brasileira é um lugar nosso de pertença, estejamos lá ou não. Então, estou me candidatando à vaga da cadeira sete como qualquer outro escritor brasileiro poderia estar se candidatando.
Você comentou durante sua fala que a ascensão de pessoas negras é importante, mas tem um perigo escondido, de sugerir que as relações raciais estão resolvidas porque alguém chegou lá. Você disse que sua história é uma exceção e que as exceções devem pensar as regras do jogo, não justificá-las. Como você lida com isso?
Lido de maneira bem consciente. Eu represento uma minoria enquanto pessoa negra que está em um determinado espaço que foi sempre de uma grande maioria branca. Se você pensa em uma autoria brasileira, você vai pensar em uma autoria masculina, depois feminina branca e, por último, pensar em uma autoria negra de homens e só depois de mulheres.
Ser reconhecida como escritora negra brasileira é uma exceção. Isso é muito recente. A gente não escutava falar de escritoras negras brasileiras, apesar do primeiro romance ter sido escrito por uma mulher negra, chamada Maria Firmina dos Reis. Então essa visibilidade que eu estou tendo não é comum para as mulheres negras. Não só na literatura, mas em outras artes, mesmo os que se julgam mais abertas. A gente vê mulheres negras no samba, mas dificilmente vê bailarina do corpo do Theatro Municipal, por exemplo.
Há uns dois anos, o Itaú Cultural fez uma exposição chamada Ocupação Conceição Evaristo, foi muito lindo. Em algum dos jornais, saiu a manchete: “Conceição Evaristo no maior centro econômico da América Latina”. Uma jornalista me perguntou como eu me sentia diante disso, eu disse que muito bem, mas que quando saia dessa exposição me tornava novamente uma mulher negra vulnerável como qualquer outra. Eu sai da Avenida Paulista, neste dia, e entrei em uma loja de departamento. O vigia me acompanhava o tempo todo. O fato de eu ser uma escritora negra não rompe com o imaginário que a sociedade tem com relação às mulheres negras.
Eu experimento uma sensação conflitante. Ao mesmo tempo que a minha história pessoal me dá essa alegria, é uma história que não se desgarra do coletivo, eu não tenho, enquanto mulher negra, nenhuma ilusão de que o imaginário que as pessoas projetam sobre mim é o imaginário que dá o lugar de escritora, a não ser para quem me conhece.
Você foi publicada primeiramente por uma editora negra, a Quilombhoje, e já disse em outras oportunidades que o movimento negro teve uma importância fundamental na recepção da sua obra. Qual a importância dos movimentos sociais para a literatura?
O primeiro lugar de recepção da minha obra foi o movimento social. Quem legitimou foi o movimento social. Eu digo isso porque foi um grande equívoco com a Carolina Maria de Jesus. Diziam que ela foi descoberta por um jornalista, é uma história muito longa, mas eu vou afirmar agora que não. Foi Carolina de Jesus que o viu Audálio Dantas na favela e começou a falar para chamar a sua atenção. Digo isso porque hoje a mídia me dá uma visibilidade muito grande, mas não foi a mídia que me fez. Quando eu chego à mídia é porque já tinham ouvido falar de Conceição Evaristo. Minha história não começa pela mídia. Reconheço sua importância, sem sombra de dúvida. A mídia me coloca em outros espaços, mas quem me leva até a mídia é a força do movimento social. É meu trabalho, que ao ser legitimado pelo movimento social, vai para salas de aula, para as pesquisas, são essas pessoas que começam a me apresentar a academia e outros pesquisadores, começam a ler e trabalhar com a minha obra, depois eu vou para mídia.
Você cunhou o termo “escrevivência”, que parece carregar um forte parentesco com o que se diz hoje nos movimentos negros e feministas, sobre lugar de fala e vivência. Você sente essa semelhança? O que contém o termo “escrevivência”?
Eu tenho trabalhado com isso desde 1995, com a minha dissertação de mestrado, em que eu faço um jogo com as palavras: escrever, viver, se ver, escrever vivendo, escrever se vendo. Depois surge o termo “escrevivência”. Em um seminário de literatura formado por mulheres negras eu escrevo: “A nossa escrevivência não é para adormecer os da casa grande, mas sim para acordá-los dos seus sonhos injustos”. Eu trago como imagem a função das mães pretas, uma das funções era de contar histórias para adormecer os da Casa Grande. Uma mulher que tinha o corpo escravizado mas também a palavra domada, cerceada. A palavra não era dela, mas tão escravizada como o seu corpo. Na medida em que uma das suas funções era contar, ou seja, falar para os meninos da casa grande. Então a minha escrita, nasce marcada pela minha subjetividade de mulher negra na sociedade brasileira, profundamente marcada pela vivência pessoal e coletiva. Produzo a partir de vidas que me interessam, que estão perto, de cidadãos, pessoas do meu cotidiano. Isso também não significa que tudo o que escrevo é uma experiência pessoal. Algumas coisas sim, mas tudo é muito marcado pelo histórico de uma coletividade, de descendentes de africanos que nos colocamos como afro brasileiros. Em nenhum momento me esqueço que estou trabalhando com a arte da palavra. Então, eu penso no vocabulário, nas metáforas, não basta ter história para contar, mas a maneira como vai se contar essa história. A vida é o meu material de ficcionalização. Por isso o termo escrevivência.
Você falou para um auditório lotado e recebeu inúmeras homenagens. Findado o debate, dezenas de pessoas vieram falar com você, te agradecer, pedir autógrafos. Como é para você ocupar esse lugar hoje, com toda representatividade que ele carrega?
Para mim, hoje, aos 71 anos, esse lugar me diz que a vida e que a utopia vale a pena. É como sentir que não caminhei no vazio. Apesar de tudo que ainda quero conquistar, apesar de tudo o que me foi sonegado, é muito recente essa visibilidade minha como escritora. De qualquer forma, foram muitos anos de luta. Aí a gente pergunta: será que todas as escritoras que conhecemos passaram por essa mesma trajetória? Precisou tanto tempo assim? Se eu fosse uma escritora branca, se tivesse nascido em outro espaço social teria sido tão tardio o meu reconhecimento? Pode até ser, mas volto a insistir: para a comunidade negra atingir seus objetivos tem muito mais entraves.
Mas hoje, perceber que tenho essa representatividade, não só na comunidade negra… acabamos de vir de um evento na França, em que foram encenados várias partes de um livro meu, chamado de “Becos da Memória”. Quer dizer, como o texto literário sensibiliza pessoas que tem outras histórias de vida. Foi muito bonito o trabalho. Então isso me dá certeza também de que a partir das experiências pessoais, você pode construir um discurso literário que convoque todos, independente de cor, experiência pessoal, país, língua.
Então, nesse sentido, estou podendo experimentar a possibilidade de uma literatura que é universal. Uma literatura que parte do particular para convocar a todos. E ter representatividade frente a um público muito jovem, eu tenho um público hoje que poderia ser meus netos. Isso, ao mesmo tempo em que me cria sentido de responsabilidade, me potencializa, porque não é nenhum crítico literário que está reconhecendo minha literatura, é quem lê. É um público leitor. Isso é muito gratificante. Talvez poucos escritores e escritoras já consagrados experimentam o que tenho experimentado. Na história da ABL nunca teve uma mobilização assim, tão grande, de um público diverso. Esse lugar que a literatura está me conferindo é um lugar que me alimenta muito mais do que qualquer prêmio. Eu escrevo e tenho certeza de que as pessoas me lêem e quem escreve quer ser lido.
Você tem uma frase sobre ter crescido “não rodeada de livros, mas de palavras”, fazendo uma referência a sua trajetória e as escolhas estéticas que você fez na sua obra. Mas gostaria de saber quais leituras te ajudaram a pavimentar seu caminho e quais você acha que seguirão pavimentado caminhos para você e para as próximas escritoras.
Olha, apesar de não ter nascida rodeada de livros, teve um momento em que tive acesso. Na minha adolescência eu li muito. Eu sempre li muito. Achava que na leitura, eu iria encontrar todas respostas para minhas angústias do momento. A leitura me ajudou muito a resolver meu problema de solidão na adolescência. Li tudo, tudo. Li tudo o que se tinha na época. Eu sou contaminada por uma escrita mineira, li muito Carlos Drummond de Andrade, Otto Lara Resende, todos os escritores de uma experiência diversa, li muito os primeiros livros da fase comunista de Jorge Amado.
A escrita negra eu descobri muitos anos depois, se bem que nos anos 1960 eu descobri “O quarto de despejo” de Carolina Maria de Jesus, que me marcou muito. Quando eu venho para o Rio de Janeiro e entro em contato com o movimento negro, vou descobrir os escritores, inclusive os africanos de língua portuguesa, e o grupo de escritores negros contemporâneos que é o grupo Quilombhoje de São Paulo, descobri também a escrita afro-americana, que eu gosto muito também, como a Toni Morrison, Alice Walker e Maya Angelou. Essas escritoras tem também um diálogo, eu tenho um diálogo com elas, assim como com a escritora moçambicana Paulina Chiziane, que eu gosto muito da literatura e tenho a felicidade de tratá-la de comadre, de tão próximas que a gente ficou.
Aqui no Brasil, Miriam Alves e a Esmeralda Ribeiro; Lívia Nathalia, Elisandra Souza, de São Paulo, então tem umas meninas, muito jovens, que acompanho e gosto muito. Como também as feministas negras, como Djamila Ribeiro, Giovana Xavier, Sueli Carneiro, tenho felicidade de ser contemporânea dela, como de Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento. Então, essas mulheres negras, a gente tem um diálogo muito forte. É como se eu fosse coautora desses textos, a partir da leitura compartilhada.
Estamos vivendo um momento difícil e conturbado da história do nosso país, pleno de desespero e com ascensão de ideias e personagens autoritários, racistas, LGBTfóbicos e misóginos, prisões arbitrárias, enfim. Em momentos assim costuma-se olhar para escritores para ajudar a entender o que se vive. Como você sente este presente?
Eu tenho um certo receio, estamos em tempos temerosos, eu tenho certo receio, mas ao mesmo tempo eu tenho uma esperança. A história é essa. A gente avança e para. Nós falamos que estamos em tempo de recuo e mesmo o que foi plantado, nós acabamos de perceber que foi em bases muito frágeis. Mas uma vez que o povo experimenta determinadas experiências, é muito difícil esse recuo. Talvez estejamos em tempo de planejar estratégias táticas. Até relembrando o que já fizemos. No movimento de mulheres negras usamos muito essa expressão: “Nossos passos vêm de longe”, então, se a gente olhar para o passado, vamos ver que algumas conquistas nós tivemos e que a luta só existe com enfrentamento. Se a gente caminhasse sempre só no espaço da vitória, deixaria de ser luta.
A luta é composta de momentos em que a gente perde, momentos que a gente ganha, mas o que nós ganhamos não vai cair em uma história de esquecimento. A gente experimentou determinados ganhos, que a gente há de recuperar. Se não for a minha geração, vai ser a geração de vocês. A gente tem que olhar essa perspectiva histórica, porque o que se a gente olhar só o presente, eu acho que quando a gente pensa mesmo com o Lula preso, foi uma nação que colocou um operário no poder, como os Estados Unidos colocou um negro no poder. Isso não saiu do nada. Não foi um milagre. A gente tem essa fortaleza para a luta.
Aproveitando o tema do Festival, o que é utopia para você?
A utopia é sempre a crença na vida. Eu aprendi sobre essa utopia, não com o discurso político, mas com a história de vida, pela minha experiência compartilhada e coletiva desse ambiente de onde venho, de descendente de africanos escravizados no Brasil. É o que eu falo: nosso povo, apesar da pobreza que assola muitos de nós, temos resistência, somos utopia, acreditamos no direito à liberdade. Na história individual, a utopia eu aprendi com minha mãe, que está com 96 anos. Essa mulher que sempre acreditou em alguma coisa, que podia ser mínima como o desejo de comprar uma máquina de costura e ela trabalhou até conseguir comprar a máquina de costura. Por isso, digo que utopia é a crença na vida. É a resiliência, o gosto pela vida, comprometimento com uma melhoria mesmo de vida, essa busca. Quando eu penso e me candidato a uma vaga da academia, isso é também uma utopia. Mas é uma utopia que seu eu não realizar, com certeza no futuro outras escritoras negras poderão fazer. Penso também na utopia como direito. As pessoas têm direito ao sonho e a construção dos sonhos. Não me refiro a esse discurso bobo, é aos sonhos como direito de vida. E por que não? Por que algumas pessoas têm que viver no desespero do nada? A utopia pode nos levar a construção de tudo. Tanto para mim, enquanto sujeito, quanto para a história de uma sociedade.