Conceição Evaristo na ABL: um passo para descolonizar o pensamento

A chegada da escritora à Academia seria um feito histórico para a literatura brasileira e de forma mais ampla para mulheres negras, cujo lugar da escrita não foi dado como natural

Por EDMA DE GÓIS, do El País 

Foto: Pablo Saborido/CLAUDIA

Imagino um encontro de Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo. Não nos anos de 1960, mas no agora, em meio ao burburinho em torno da candidatura da autora de Olhos d’ água (Prêmio Jabuti 2015), à cadeira número 7 da Academia Brasileira de Letras (ABL), cujo resultado será conhecido nesta quinta-feira (30). A autora de Quarto de despejo, é bem provável, se rejubilaria na conquista de Conceição, que transcende o trabalho individual e faz as vezes de caminhada de muitas outras Conceições e Carolinas. A expectativa é que Conceição Evaristo, se eleita for, viva um feito histórico para a literatura brasileira e de forma mais ampla para mulheres negras, cujo lugar da escrita não foi dado como natural, uma vez que jamais está dissociado do poder e, em uma sociedade como a brasileira, a recusa branca à concessão de privilégios é uma pauta permanente. Mas voltemos a cena. Conceição chega à ABL acompanhada por Maria Firmina dos Reis, autora do precursor Úrsula (1859), de Ruth Guimarães, que publica Água funda quase cem anos depois, em 1946, e, como nas narrativas do afrofuturismo, em que passado e presente se combinam em torno de um futuro mais viável, por mais dezenas de jovens escritoras afrodescendentes, que produzem no século XXI narrativas a um passo de descolonizar o nosso pensamento, a começar pela escrita.

Em todo o país, os últimos anos assistiram o surgimento de trabalhos que procuram dar visibilidade à autoria de mulheres negras, resultado de um mundo em que as minorias, percentualmente a maioria no país, reivindicam reparações a direitos históricos, de uma universidade brasileira em que mais negros puderam ter acesso a partir de 2002, e de leitores que desejam se ver finalmente representados nas narrativas. Não me refiro apenas ao trabalho de pesquisa acadêmica que, driblando o racismo institucional, aponta para o crescente interesse pelo espólio de Carolina Maria de Jesus, redescobre a poetisa simbolista Gilka Machado (branca nas imagens de época tal e qual o primeiro presidente da ABL, Machado de Assis, também embranquecido pela história), e faz uma releitura da crítica e da historiografia literária. Editoras de pequeno porte, batalhas nas periferias (e não só nelas!) como os slams, eventos literários, projetos de inserção de escritoras negras, são algumas ações que desenham o panorama de refração do efeito produzido por autoras que furaram o cerco e se estabeleceram no campo literário brasileiro como a mineira Conceição Evaristo, com sete obras publicadas. Em meio a dezenas de iniciativas, o Escritoras Negras da Bahia é um projeto que me chama atenção, não apenas pelo rastreamento de escritoras negras no estado brasileiro onde o Brasil começou, mas sobretudo porque incentiva que as próprias escritoras negras se anunciem neste censo. Em um ano de projeto já foram mapeadas cerca de 50 autoras e o público pode conhecer os perfis de pelo menos 30 delas pelo website da iniciativa, clicando nos nomes das escritoras ou explorando o mapa da Bahia. Para se ter a dimensão do que esse número representa, podemos pensar em outra iniciativa importante, o Panorama editorial da literatura afro-brasileira através dos gêneros romance e conto, dossiê elaborado por Luiz Henrique Silva de Oliveira e Fabiane Cristine Rodrigues. Nele, foram contabilizados 29 autores, entre eles apenas nove mulheres, publicados entre 1859 e 2016, totalizando 61 romances de autoria afro-brasileira. Mas também podemos apelar para uma situação concreta e até individual, parafraseando a provocação que fomenta o projeto baiano: quantas escritoras negras contemporâneas, você, leitor, conhece? Se adaptarmos a pergunta para o contexto baiano, estaremos falando do mesmo local de onde saíram nomes amplamente conhecidos como Castro Alves e Jorge Amado. Como justificar então que não se conheça o trabalho de escritoras negras do estado mais negro do país?

A coordenadora do projeto, jornalista e doutoranda em Literatura pela Universidade de Brasília (UnB), Calila das Mercês, define sua atuação, bem como da equipe que viajou pela Bahia, ministrando oficinas para estabelecer contato com as escritoras de diversos gêneros, tanto escritos quanto orais, como uma espécie de curadoria, sem intenção de eleger bons e maus textos, de dizer quem pode ou não carregar a alcunha de escritora. À equipe cabe o papel de incentivar essas artistas da palavra a compartilharem seus trabalhos, a se sentiram escritoras, feito ainda raro para muitas delas. O grupo, que conta ainda com Kênia Freitas, pesquisadora de cinema negro e afrofuturismo, e Raquel Galvão, doutoranda em Literatura pela Universidade de Campinas (Unicamp), começou as visitas pelo extremo sul da Bahia, não à toa, porque é lá que começam as narrativas sobre o descobrimento. Caravelas, uma das primeiras cidades do território brasileiro, entre outras dos 417 municípios baianos, foi visitada pelo projeto em busca de diálogo com mulheres leitoras e escritoras, cuja ancestralidade é centenas de anos anterior aos movimentos feministas. Em seu primeiro ano, o projeto recebeu apoio do Fundo de Amparo à Cultura do Estado da Bahia, e agora deseja outros voos, como a publicação independente de textos de algumas das autoras mapeadas, porém com trabalhos ainda inéditos ou publicadas por selos de pouca visibilidade.

 

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