Conviver com o ódio não pode ser natural no nosso dia a dia

Sem a regulamentação das plataformas digitais, pessoas negras LGBTQIA+ seguirão expostas a uma cultura de violência

Quando você é uma pessoa negra, estar próximo aos seus semelhantes torna-se uma estratégia necessária para sobreviver às armadilhas do racismo. Quando você é LGBTQIA+, estar em comunidade significa encontrar o acolhimento que, em muitas ocasiões, a sociedade se nega a oferecer.

Para gerações como a minha, que tenho 22 anos, a internet era uma ferramenta para promover possibilidades de encontros. Mas isso mudou depois que as plataformas digitais se tornaram palco de ofensas discriminatórias informações falsas.

Sendo uma mulher negra, bissexual e nascida na periferia do Rio de Janeiro, foi por meio do YouTube, de grupos do Facebook e de conteúdos no Twitter que eu descobri o que era empoderamento negro e que a heterossexualidade não era compulsória.

Por outro lado, esses mesmos espaços me expuseram a discursos de ódio, principalmente a partir da ascensão de grupos extremistas no Brasil. Rolar a tela passou a ser uma atividade desconfortável.

Em 2018, a revista Híbrida elaborou uma lista com dez fake news contra a comunidade LGBT+ disseminadas durante o período eleitoral, dentre as quais a distribuição de mamadeira erótica pelo então candidato Fernando Haddad, hoje ministro da Fazenda, e a promoção do chamado kit gay nas escolas.

Em 2021, em entrevista ao programa Roda Viva, Anielle Franco, atual ministra da Igualdade Racial, relatou ter recebido diversas fake news a respeito de sua irmã Marielle Franco —vereadora no Rio de Janeiro— apenas duas horas após o assassinato dela, em março de 2018. Hoje, uma simples busca no Google mostra notícias e posts que ferem não apenas a memória de Marielle Franco, mas o direito de toda mulher negra LGBT+ à dignidade, seja na vida ou na morte.

Oito em cada dez pessoas negras LGBT+ do Rio de Janeiro já foram vítimas de discurso de ódio, segundo pesquisa lançada pelo Data Labe em parceria com a Internews em março. O estudo, que entrevistou 175 pessoas deste grupo demográfico, indica que a população negra LGBT+ pode estar mais propensa a ter contato com notícias e conteúdos que propagam desinformação e discurso de ódio.

Além disso, cerca de 75% dos respondentes da pesquisa afirmaram que a internet é seu principal meio de comunicação e de acesso à informação, e 45% dos participantes declararam ter renda de até R$ 1.212.

Assim, quem tem poucos recursos corre o risco de ficar incomunicável se atingir o limite de dados móveis dos pacotes ofertados pelas operadoras telefônicas. De acordo com levantamento do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), pessoas das classes C, D e E têm conexão à internet somente durante 23 dias no mês, em média.

Com o debate em torno do projeto de lei 2.630/2020 —o PL das Fake News— na Câmara dos Deputados, a sociedade tem uma oportunidade de controlar a difusão de notícias falsas e de discurso de ódio na internet. O texto propõe que plataformas digitais adotem uma política transparente para moderar conteúdos violentos, como a incitação de ataque a escolas, ameaças à democracia e crimes de ódio por conta de raça, religião e orientação sexual.

Atualmente, muitas plataformas suspendem conteúdos sem informar os usuários sobre o motivo da sanção e sem oferecer possibilidade de recurso, enquanto permitem que outros usuários cometam crimes disfarçados de opinião. O projeto também busca restringir a criação de contas falsas, que geralmente são usadas para ampliar o alcance de fake news.

Nesta semana, o Telegram abusou de seu poder econômico ao divulgar, para todos os seus usuários no Brasil, uma nota com argumentos enviesados e enganosos contra o PL das Fake News. Isso mostra que são as próprias plataformas que promovem a censura e a desinformação.

A liberdade de expressão é um direito inegociável, mas não pode ser usada como justificativa para disseminar o ódio. Longe de promover a censura, o PL pode ajudar a cessar a escalada da violência e proteger populações marginalizadas e estigmatizadas.

Uma comunidade desinformada é uma comunidade desarmada na batalha por uma existência digna. Lutar pelo fim da fake news e da desinformação é uma forma de dizer: “conviver com o ódio não pode ser natural no nosso dia a dia”.

+ sobre o tema

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...

para lembrar

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...
spot_imgspot_img

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro no pé. Ou melhor: é uma carga redobrada de combustível para fazer a máquina do racismo funcionar....

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a categoria racial coloured, mestiços que não eram nem brancos nem negros. Na prática, não tinham...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira (27) habeas corpus ao policial militar Fábio Anderson Pereira de Almeida, réu por assassinato de Guilherme Dias...