Carta às mães haitianas: o mundo vive um apartheid real

Prezadas mães haitianas,

Nesta semana, tive calafrios quando li um informe da ONU mostrando com detalhes como suas filhas e filhos estão sendo queimados vivos, como estupros coletivos se multiplicam, como a violência fechou centenas de escolas, impediu o atendimento de saúde e, mais uma vez, adiou o futuro. Apenas no mês de abril, foram mais de 600 assassinatos no Haiti.

Mas o verdadeiro choque foi quando eu disparei ligações a missões diplomáticas de diversos países para tentar entender onde estava o pedido que o governo do Haiti havia feito em outubro por ajuda internacional. A solicitação, me disseram, estava estagnada diante da recusa dos países ricos em enviar seus soldados para a região. Um desses embaixadores me disse: “o Haiti não tem solução”.

O abandono, porém, não é apenas militar. Para a crise humanitária que abala o país, a ONU pediu 718 milhões de dólares para sair ao socorro da população local. Estamos quase na metade do ano e a entidade apenas recebeu de doadores 11% do valor solicitado. Em educação, foram solicitados 50 milhões de dólares. Mas o país não recebeu um centavo sequer. Para assegurar água potável, saneamento e higiene, o plano recebeu apenas 2,5% do necessários.

O maior cheque seria para garantir alimentos.

Dos 400 milhões de dólares que a ONU precisava para isso, ela recebeu escandalosos 1,2% do valor. Em cinco meses, a Ucrânia já recebeu em ajuda humanitária mais que todo o recursos que o Haiti precisaria para o ano de 2023.

Escrevo a vocês com a triste constatação de que sua crise é ignorada pelo mundo. Sequer encontra espaço para a capa dos jornais. Não mobiliza recursos e nem tropas. Escrevo para lhes dizer que a morte de seus filhos é o espelho da hipocrisia das nações supostamente civilizadas. Em cada assassinato está o atestado de óbito de políticas externas que, no papel, se apresentam como bússolas da democracia e dos direitos humanos.

Neste domingo em que famílias se reúnem para celebrar vocês, mães, deixo aqui minha solidariedade e indignação.

Em muitos aspectos, o mundo vive um apartheid real. Silencioso? Apenas para os surdos. Ou, como diria Nelson Rodrigues, o pior cego é aquele que não quer ver. E o mundo opta por não querer ver o déficit de humanidade em zonas que, se estão no mapa, parecem ter desaparecido da consciência coletiva.

O Haiti das filhas e filhos de vocês é um desses locais. Não há fatalidade. Certamente a disputa doméstica por poder, a corrupção, terremotos, furacões e o colapso do estado contribuíram para a condição do país. Mas uma recente reportagem do jornal The New York Times revelou o que historiadores e a população local já sabem há anos: a comunidade internacional fez o Haiti de refém, com perdas que podem somar oito vezes seu próprio PIB atual.

O pagamento do resgate pela revolução de 1791 transformou o que era uma das colônias mais rentáveis do mundo em uma dívida impagável. Assim relata o New York Times:

Por gerações após a independência, os haitianos foram forçados a pagar os descendentes de seus antigos senhores de escravos, incluindo a imperatriz do Brasil, o genro do imperador russo Nicolau I, o último chanceler imperial da Alemanha e Gaston de Galliffet, o general francês conhecido como o “açougueiro da Comuna” por esmagar uma insurreição em Paris em 1871.

Os encargos continuaram até o século XX. A riqueza que os ancestrais da Sra. Present extraíram do solo trouxe grandes lucros para um banco francês que ajudou a financiar a Torre Eiffel, o Crédit Industriel et Commercial, e seus investidores. Eles controlaram o tesouro do Haiti de Paris por décadas, e o banco acabou se tornando parte de um dos maiores conglomerados financeiros da Europa.

As riquezas do Haiti também atraíram Wall Street, proporcionando grandes margens de lucro para a instituição que acabou se tornando o Citigroup. Isso afastou os franceses e ajudou a estimular a invasão americana do Haiti – uma das mais longas ocupações militares da história dos Estados Unidos”

Hoje, quando escuto que “o Haiti não tem solução”, a realidade é que há quem queira fazer vingar a narrativa de que seus filhos nasceram em uma latitude que determina seu destino. Uma cômoda e mentirosa forma de abafar a história, seus lucros e suas responsabilidades.

Diante de mães que testemunham seus filhos perambulando pelas fronteiras do continente para sobreviver, resgato como Aimé Césaire certa vez escreveu que a “negritude no Haiti se levantou pela primeira vez e disse que acreditava em sua humanidade”.

Hoje, ao ser abandonado, o país não testa a existência da humanidade de suas mães e cidadãos. Mas o da própria comunidade internacional.

Saudações democráticas,

Jamil

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