Correspondente de guerra

Todo favelado é correspondente de guerra e, pior, sem poder voltar pra casa, sem poder evitar aquela área

Por Ana Paula Lisboa Do O Globo

Eu já contei que queria ser jornalista? Antes disso eu quis ser cantora, dançarina do É o Tchan ou telefonista. Na real, pensando agora, todas essas profissões do tempo do sonho também são profissões de comunicação.

Jornalismo era desejo, aquilo que a gente cria plano, estratégia. Eu falava muito na infância e teve um tempo que meus pais me chamaram de Gloria Maria, porque eu queria saber de tudo. Nas insônias, eu acompanhava o “Jornal da Globo’’ com a Ana Paula Padrão e logo depois me imaginava sendo entrevistada pelo Jô, ensaiei varias vezes.

[Jô, ainda dá tempo de me chamar!]

Eu sempre vi muito jornal por causa da minha avó, que fazia questão de “saber das notícias”, e, nos últimos dias, mesmo sem diploma, me vi jornalista: correspondente de guerra.

Não fui só eu, acompanhei também as atualizações sobre as outras guerras com mais três mulheres: Gabriela Lazaro, na Cidade Alta, Vivi Sales e Carol Meirelles, na Cidade de Deus. Delas, eu sou a menor. Diferentemente delas, eu não sou cria desses territórios, mas fiz da Nova Holanda, no Complexo da Maré, a minha casa. Delas, eu sou a mais medrosa, porque Gabi filmou a invasão e os tiros na CDA, e Carol e Vivi foram pra frente na CDD, as primeiras a noticiar a queda do helicóptero.

Alguns minutos após Vivi e Carol, o “RJTV 2ª Edição’’ também deu a notícia, ainda sem muitas informações. Ironicamente, a matéria que se seguiu era sobre o aniversário de um ano do Lagoa Presente. Os moradores e frequentadores da Lagoa Rodrigo de Freitas comemoravam a diminuição da criminalidade e o fato de poderem voltar a caminhar mais seguros.

Diego Haidar entrevistou ao vivo um menino de bochechas rosadas, que aprendeu a fazer cupcake, umas das oficinas da festa que ainda acontecia por volta das oito da noite.

Na volta, a Linha Amarela foi fechada mais uma vez e “evitem aquela área!”. Evitem aquela área?

Todo favelado é correspondente de guerra e, pior, sem poder voltar pra casa, sem poder evitar aquela área.

O “Jornal Nacional’’ seguiu com as últimas informações, Evaristo Costa e Giuliana Morrone no plantão.

Previsão do tempo com zero grau nas cidades do extremo sul, Maju linda vestindo saia amarelo-oxum e com os cabelos soltos.

A família de Edna Amaralina fala pela primeira vez sobre o assassinato da filha, com quatro tiros, em casa, pelo ex-marido. Imediatamente depois, vem a chamada do “Fantástico’’ do dia seguinte: a vida de Elize Matsunaga, que matou e esquartejou o marido em 2012. A gente quase acredita que os casos têm ligação, que o assassinato de homens por mulheres e mulheres por homens têm a mesma proporção.

Não se engane: o Brasil é feito de Ednas e não de Elizes.

Giuliana Morrone chama, sorridente, a matéria do UFC do fim de semana, Minotouro e Ryan Bader geram expectativa. Eu percebi há tempo que o esporte é a parte leve dos telejornais, normalmente são as últimas matérias. É a hora da motivação, da superação, a jornada do herói.

Mais uma vez a Cidade de Deus no VT, o “Jornal Nacional’’ usa imagens com a logo da página “Jacarepaguá News”, que antes mesmo do G1 já havia divulgado o nome dos policiais mortos na queda do helicóptero e deixava claro que “a resposta viria”. Quem serão seus administradores?

Na manhã seguinte, sete corpos cobertos por lençóis estampam matéria on-line de “O Globo’’, e a tese de que os anos 90 estão de volta se comprova naquela imagem, típica de chacina.

Passei o dia 20 trancada em casa, sem clima para roda de samba, jongo, oficina de turbante, roda de discussão pra falar de negritude para nós mesmos. Continuei acompanhando a cobertura de Viviane Sales e Carolina Meirelles, e revezando com alguma música mais leve e poucas conversas. Você sabia que o Canal Futura tem um reality show de musica clássica?

Seis da manhã do dia 21. Terceiro dia.

Eu vi amanhecer. Dormi no sofá da sala porque é a parte da casa que me sinto mais segura. Os cachorros latiam assustados. Tiros. Fazia tempo que não via o caveirão. O helicóptero parecia estar dentro de casa. Muitos tiros. Os cachorros param de latir, e eu suponho que eles estão na mesma posição que eu: acuados no canto. Correria. Eu só consigo pensar em escrever. Intervalo. “Está passando na televisão!”.

Na Record, Tino Júnior apresenta imagens do mesmo helicóptero que bagunça a minha cabeça no ar, a favela vista de cima. Tino exalta os bravos militares e também o helicóptero, descrevendo-o como pesado, potente, e que os moradores sabem. Sim, os moradores sabem. Ele se retrata dizendo que tudo aquilo é necessário para garantir a segurança das pessoas. Penso na Lagoa. Caveirão. Tiros. “[nome que não consegui compreender] vou mandar daqui!”. Duas rajadas de tiro que tive a impressão de que perfurariam meu corpo.

Eu no chão. Tiros. Caveirão. Pausa. Cadu me liga. Conto das coisas. 8 da manhã, perdi o ônibus para Paraty. No intervalo das hélices do helicóptero, os pássaros do vizinho cantam, o sol entra pela janela e, ironicamente, é uma manhã bonita. Acendo minhas velas, afinal, é segunda. Mochila, bolsa e coragem. Cápsulas de bala no portão de casa, pensei em pegar e guardar, mas não fiz. Ando rápido, outras pessoas também.

Caveirão. O casal de mãos dadas à frente aperta ainda mais as mãos. Aperto o passo. Todos têm olhos assustadoramente assustados. Sangue na rua. Fico enjoada, vomito na esquina, choro um pouco. Ando. A menina que todos os dias entrega folheto de clínica dentária está lá, eu pego, como sempre, pra ajudar, as mãos dela tremem.

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