Cuidado na saúde mental exige recursos e apoio governamental

Política pública precisa propiciar tratamento qualificado e humanizado

Audre Lorde, mulher negra, feminista e poeta, escreveu sobre cuidado e autocuidado no final dos anos 1980, período em que tratava de um problema grave de saúde. Ela relacionava o cuidado no campo da saúde mental à solidariedade, ao compartilhamento do afeto, à amorosidade. E nesse contexto ela enfatizava a importância de esse cuidado se dar no coletivo. Em vez do isolamento em instituições, a relação com a família e com a comunidade era enfatizada por Audre.

Lembrei-me dessa perspectiva de Audre na semana passada, quando o debate sobre saúde mental, comunidades terapêuticas e as políticas públicas se intensificou muito e inúmeras organizações da sociedade civil, desse campo, se manifestaram publicamente.

A escritora e ativista Audre Lorde – Elsa Dorfman/wikimedia

Depois de participar ativamente de um processo de transição do governo federal, envolvendo diálogo com os movimentos sociais, e o desdobramento na criação de uma proposta de política voltada para cuidados efetivos da população brasileira, a Abrasme (Associação Brasileira de Saúde Mental) e muitas outras organizações que atuam nesse campo e no campo de direitos humanos foram surpreendidas com a criação de um Departamento de Apoio às Comunidades Terapêuticas (CTs) pelo Ministério do Desenvolvimento, Assistência Social, Família e Combate à Fome.

A função desse departamento recém-criado é dar apoio às comunidades terapêuticas que, nos últimos anos, têm sido alvo de diversas inspeções que apontaram graves violações de direitos humanos.

Indícios de tortura, castigos psicológicos e físicos, punições, práticas de revista corporais, violações a liberdade religiosa e à orientação sexual são algumas das violações que constam do relatório de inspeção de 2017, do Conselho Federal de Psicologia, e são destacadas pelo Instituto Amma Psique e Negritude, em nota pública, e por diversos movimentos, tais como o Despatologiza.

Relembrando a história, há quase 40 anos, em 1987, no Congresso de Trabalhadores de Serviços da Saúde Mental, que aconteceu em Bauru (SP), nasceu o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, cujo principal objetivo era justamente enfrentar a violência dos métodos psiquiátricos, que utilizavam internações compulsórias e isolamento, além de eletrochoques.

Décadas depois foi sancionada a Lei da Reforma Psiquiátrica, que tem como característica principal o esforço em assegurar tratamentos mais humanizados, e é nesse trajeto que foram se fechando os manicômios.

E essa luta segue firme, pois o cuidado no campo da saúde mental exige recursos e apoio governamental.

E esse investimento deve priorizar o SUS, a Raps (Rede de Atenção Psicossocial), dos Caps (Centros de Assistência Psicossocial), garantindo o cuidado integral à saúde mental. Esses órgãos consideram o que define a Lei da Reforma Psiquiátrica e o que foi decidido na luta antimanicomial, que significa, entre outras coisas, o não isolamento das pessoas.

Assim, vale destacar que é de extrema importância assegurar a construção de uma política comprometida com o cuidado em liberdade, com a luta antirracista, com a garantia da diversidade étnico-racial nos postos de gestão e serviços e a permanente interlocução com os movimentos sociais (negros, indígenas, antimanicomiais, direitos humanos, antiproibicionistas, entre outros), como sinaliza a Frente Nacional de Negros e Negras da Saúde Mental, juntamente com a Abrasme.

Nossa expectativa é que o governo federal, que vem atuando fortemente na humanização dos serviços públicos prestados à sociedade brasileira, marcada por anos de medidas antidemocráticas, implemente, em diálogo com a sociedade civil, uma política pública que propicie tratamento qualificado e humanizado no campo de saúde mental.

“Uma pessoa se torna pessoa através de outras pessoas. Desumanizar uma pessoa inexoravelmente significa desumanizar a si mesmo” (Desmond Tutu, “No Future without Forgiveness”, 2000).

+ sobre o tema

para lembrar

Temer retira 70% da verba de combate ao trabalho escravo, apontam auditores

De 2015 para 2017, caiu quase pela metade o...

Milton Nascimento: não foi desastre, foi crime

O cantor e compositor Milton Nascimento abriu seu show no...

Brasil é chamado a se explicar na ONU por esvaziar mecanismo de combate à tortura

O subcomitê da Organização das Nações Unidas para a...
spot_imgspot_img

Ministério da Igualdade Racial lidera ações do governo brasileiro no Fórum Permanente de Afrodescendentes da ONU

Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, está na 3a sessão do Fórum Permanente de Afrodescendentes da ONU em Genebra, na Suíça, com três principais missões: avançar nos debates...

Conselho de direitos humanos aciona ONU por aumento de movimentos neonazistas no Brasil

O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, acionou a ONU (Organização das Nações Unidas) para fazer um alerta...

Golpes financeiros digitais deixam consequências psicológicas nas vítimas

Cair na conversa de um estelionatário e perder uma quantia em dinheiro pode gerar consequências graves, não só para o bolso, mas para o...
-+=