Num país que leva impunidade como selo, anistia como marca, jeitinho no DNA, não é trivial que uma Turma de cinco ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) acolha, por unanimidade, a denúncia contra um ex-presidente da República, três generais e ex-ministros, um almirante. Por atentarem contra a democracia. Jair Bolsonaro, Walter Braga Netto, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Oliveira e Almir Garnier ocuparam alguns dos postos mais importantes da República na última meia década. Foram investigados pela Polícia Federal, denunciados pela Procuradoria-Geral da República, serão julgados pelo STF. Instituições civis prevaleceram. Inédito.
Ainda que a sina, adiante, se imponha, a ação penal se prolongue, o julgamento dê em nada, e as penas sejam atenuadas — são tantos os (des)caminhos possíveis –, a quarta-feira, 26 de março de 2025, seguirá histórica. Cinco dias antes do aniversário de 61 anos do golpe militar que empurrou o Brasil para o arbítrio e a brutalidade por duas décadas, altas patentes caminham para o banco dos réus por, novamente, tentar atentar contra a institucionalidade. Como escreveu em nota a Comissão Arns, referência na defesa dos direitos humanos no país:
— Em um momento em que a democracia está sob ameaça em muitos países, a posição firme do STF é exemplo de compromisso com a Constituição. Este processo dará aos acusados as chances de ampla defesa que as ditaduras jamais concederam aos seus dissidentes.
Na primeira fila do julgamento, estavam Ivo Herzog e Hildegard Angel. Ele, filho do jornalista Vladimir Herzog, assassinado pelo regime num prédio do DOI-Codi, em São Paulo, em 1975. Ela, irmã de Stuart, filho de Zuzu Angel, igualmente vítima da ditadura militar brasileira. O estudante de economia e atleta de remo, preso para revelar o paradeiro do capitão Carlos Lamarca, um dos líderes da luta armada, foi torturado e morto na Base Aérea do Galeão, no Rio, em 1971. A estilista, incansável na busca por verdade e justiça no desaparecimento do filho, morreu num acidente provocado na Estrada da Gávea, Zona Sul carioca, em 1976. As certidões de óbito dos três foram retificadas, com a causa mortis atribuída ao Estado brasileiro.
A presença de Ivo e Hilde na sede da Corte, um dos Poderes alvos da trama golpista com clímax em 8 de janeiro de 2023, dá a medida de relevância histórica das três sessões de apreciação, pela Primeira Turma do STF, da denúncia do procurador-geral, Paulo Gonet. Ao mesmo tempo, desperta o misto de curiosidade e indignação pelas ilegalidades enfileiradas, segundo a peça de acusação, desde 2021, sem que o procurador-geral anterior, Augusto Aras, tenha agido. Alexandre de Moraes, ministro relator, fez leitura objetiva pelo acolhimento da denúncia; exibiu vídeo com cenas de destruição em Brasília, para contrapor o que chamou de viés de positividade da sociedade; individualizou responsabilidade, como manda o devido processo. Luiz Fux apontou divergências que não só enriquecem o debate, mas também a retórica política da extrema direita de que o país é terra de perseguição, não de liberdade democrática. Cristiano Zanin, presidente da Turma, fez voto protocolar.
Brilharam na sessão de julgamento os ministros Flávio Dino, ex-governador do Maranhão e ex-ministro da Justiça, e Cármen Lúcia, única mulher entre os 11 integrantes do STF. Dino avisou que “golpe de Estado mata, não importa se no dia, no mês seguinte ou alguns anos depois”. Carlos Fico, historiador da UFRJ dedicado a pesquisas sobre os Anos de Chumbo, escreveu em um par de livros que a ditadura militar matou no primeiro dia, ao menos, três estudantes. Jonas Barros e Ivan Aguiar foram recebidos a tiros, quando se dirigiam ao Palácio das Princesas, no Recife, em protesto pela destituição do governador Miguel Arraes. No mesmo 1º de abril de 1964, no Rio de Janeiro, integrantes do Comando de Caça aos Comunistas surpreenderam manifestantes que reagiam à derrubada de João Goulart da Presidência. Morreu Ari Cunha, aluno da Faculdade Nacional de Direito.
Os dois episódios estão contados nos livros “O golpe de 1964 — Momentos decisivos” (Editora FGV) e “História do Brasil contemporâneo — Da morte de Vargas aos dias atuais”. Fico evoca a memória para refutar o mito de que grandes transformações políticas do país — da Independência à Abolição, da República à ditadura e à redemocratização — ocorreram sem derramamento de sangue. Muita gente morreu na vigência; muitos ainda morrem, por legado.
— A tese de um golpe asséptico e banal relaciona-se à persistência do mito da história incruenta e corrobora a leitura segundo a qual, nos primeiros anos do regime militar, não teria havido tortura. Isso realmente não é verdade. Logo após o golpe, inúmeras ações arbitrárias ocorreram, como prisões sem mandado, interrogatórios violentos e tortura. O golpe, como costuma acontecer nesses casos, liberaria uma onda de arbítrio — escreveu o professor.
— Ditadura mata. Ditadura vive da morte, não apenas da sociedade, não apenas da democracia, mas de seres humanos de carne e osso, que são torturados, mutilados, assassinados toda vez que contrariarem aquele que detém o poder para o próprio interesse — declarou Cármen Lúcia em seu voto.
Ela citou a pesquisa da historiadora Heloisa Starling, da UFMG, para “A máquina do golpe” (Companhia das Letras), para advertir que “não se faz um golpe em um dia, e o golpe não acaba em uma semana, nem em um mês”.
A democracia brasileira esteve sob risco. Essa trama, agora, pôs o topo de comando no banco dos réus. É preciso reconhecer a História quando a testemunhamos.