A Fundação Perseu Abramo (FPA), com a mediação de Miguel Rossetto, proporcionou uma live sobre “Participação Popular na Reconstrução Nacional”, em 14 de setembro. Do evento, que reuniu personalidades do Rio Grande do Sul, participaram Olivio Dutra, Stela Farias, Reginete Bispo e Ubiratan de Souza, companheiros e companheiras de longa tradição de militância na construção do Partido dos Trabalhadores (PT), junto aos movimentos sociais, sindicatos, associações e no exercício de cargos de responsabilidade na institucionalidade, nos diferentes entes federativos. Há que aliar à luta contra Bolsonaro e o bolsonarismo a reflexão sobre o day after.
O tema do debate é fundamental para avançar na consolidação das conquistas ideopolíticas no Brasil e na América Latina. Lembro, a propósito, de um comentário feito pelo professor Jean Leca, à época presidente da Associação Internacional de Ciência Política, em que ele afirmava em uma conferência no Institut D’Études Politiques de Paris que era fácil identificar a procedência histórico-geográfica de qualquer texto político ou sociológico: bastava folheá-lo. Se aparecesse com insistência a palavra “participação”, com certeza, o autor era latino-americano. Entende-se: acá, se tem consciência de que, sem participação cidadã, tudo que é sólido se desmancha no ar. Se repetisse muito a palavra “representação”, seria da lavra de um norte-americano ou de um europeu.
Há razões, para isso. A história da representação nos Estado Unidos e, mais ainda, na Europa do pós-guerra trouxe benefícios para a maioria da população através do Estado de Bem-Estar Social. A participação foi uma modalidade de ação política muito usada por regimes autoritários, por meio de plebiscitos. Leca tinha na memória os expedientes utilizados de forma chantagista por De Gaulle, ao convocar a população a se manifestar. Evidentemente, a participação ficou marcada com um carimbo político-ideológico além-mar. O preconceito começou a se desfazer com a divulgação da experiência do Orçamento Participativo (OP), iniciada em Porto Alegre quando Olívio Dutra era prefeito (1989-1992). Quanto à história da representação na AL, dominada por oligarquias com sentimentos de vira-latas e olhos submissamente revirados para o hemisfério Norte, raras vezes contemplou as demandas das classes subalternas. Veja-se, nos desgovernos Temer e Bolsonaro, as investidas constantes contrárias aos direitos adquiridos pelos trabalhadores e a destruição dos valores civilizacionais pavimentados a partir da vitória eleitoral de Lula da Silva, em 2002.
Como governador do Rio Grande do Sul, tendo por vice Miguel Rossetto, Olívio reafirmou a marca da participação na administração estadual (1999-2002). Ubiratan de Souza e Íria Charão foram coordenadores das lendárias jornadas que mobilizaram milhares de cidadãos em todas as querências, em um processo de democratização do poder. Stela Farias, na prefeitura de Alvorada (1997-2004), implementou a inovação administrativa num dos municípios mais carentes da região metropolitana de Porto Alegre. Enquanto o neoliberalismo criava raízes no país, sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso, que realizou algumas conferências nacionais (oito), embora sem conferir-lhes um caráter de força auxiliar sistemática da governabilidade, o princípio da participação política ganhava terreno na opinião pública. No momento histórico de refluxo, fora de uma conjuntura revolucionária, retumbava a lembrança dos soviets de São Petersburgo, no longínquo 1905, na energia criativa que irrompia na alma do povo do Sul do Brasil.
O OP, ao se tornar uma referência nacional e internacional, constituiu-se no motivo principal para que as primeiras edições do Fórum Social Mundial (FSM) ocorressem na capital gaúcha, na virada do século XX para o XXI. Raul Pont era então o entusiasta prefeito (1997-2000) que recepcionou o formidável acontecimento. Hoje, o OP existe em uma centena de municípios brasileiros e é, com variações, endossado por distintas siglas partidárias. É reconhecido pelo Banco Mundial como modelo de gestão para o controle democrático dos recursos públicos. Nos governos Lula e Dilma (2003-2016) a participação foi estimulada em conselhos e em conferências nacionais (mais de oitenta), que serviram à elaboração de políticas públicas em múltiplas áreas: saúde, educação, igualdade étnico-racial, de gênero, etc.
Reginete Bispo, suplente do senador Paulo Paim, por sua vez, trouxe uma provocação instigante ao debate. Ao ressaltar que os negros, as mulheres, os indígenas e os grupos LGBTQIA estão sub-representados nas casas legislativas, alertou ser preciso evitar que essa triste realidade se reproduzisse no interior da democracia participativa. Vale refletir sobre o ponto, mesmo em rápidas pinceladas. Como defender os setores sociais, credores de direitos, nos próprios mecanismos da democracia direta?
A preocupação procede. Sueli Carneiro, em um artigo sobre “Focalização versus Universalização” (Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil, Ed. Selo Negro, 2011), chama a atenção para a reiteração da exclusão nas políticas universalistas em contextos de grande desigualdade social, apesar da boa intenção que envolve as iniciativas. O combate focal às desigualdades mostra resultados superiores sobre a redução da pobreza, na comparação com os efeitos via crescimento econômico. O que traz para a discussão a necessidade de políticas de focalização contra as desigualdades estruturais. As políticas de cotas, nesse sentido, têm lugar central.
“A realização dos ideais das políticas universalistas no Brasil depende de sua focalização nos segmentos sociais que, historicamente, elas mesmas vêm excluindo. E o parâmetro de qualidade que devem perseguir e oferecer são os padrões dos serviços desfrutados pelas classes média e alta da sociedade”, escreve a fundadora do Geledés Instituto da Mulher Negra. As cotas étnico-raciais nas universidades federais públicas, onde 92% dos estudantes pertencem aos 20% mais ricos da população, são de extrema importância, conforme é fácil depreender. Os dados são de José Márcio Camargo, PUC/RJ, expostos na revista Exame (02/02/2011).
Garantir nas instâncias de representação das inúmeras variantes de OP, em escala municipal estadual e nacional, cotas que corrijam a vergonhosa sub-representação dos sujeitos sociais que têm sido calados pelo status quo – é um compromisso essencial para que a democracia participativa cumpra um papel inclusivo no âmbito da sociedade e/ou do Estado. Para que não seja um número da “democracia de espetáculo”, senão uma alavanca real para a consecução da igualdade de direitos em termos de oportunidades (concepção liberal) e resultados (concepção socialista).
A fim de que possa antecipar e presentificar o futuro no seu modus operandi, o embrião da organização social utópica precisa penetrar as esferas de deliberação construídas pelos movimentos populares e pelos partidos do campo democrático-popular. Caminante no hay camino / se hace camino al andar, para evocar os versos de Antônio Machado, transformados em música por Joan Manuel Serrat. A utopia nasce da terra em que pisamos, dia a dia. É na experiência concreta que crescem as sementes da nova manhã. Livres do colonialismo (racismo) e do patriarcado (sexismo).
Luiz Marques é Professor de Ciência Política da UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul (Governo Olívio Dutra)