Eduardo Pereira da Silva: Os gorilas invisíveis no processo penal brasileiro

Há pouco mais de dez anos, os psicólogos estadunidenses Christopher Chabris e Daniel Simons publicaram um livro voltado para leigos chamado O gorila invisível e outros equívocos da intuição (The invisible Gorilla and other ways our intuitions deceive us) compartilhando com o público uma série de experiências, inclusive aquela que dá nome à obra.

A experiência do Gorila Invisível pode ser facilmente visualizada na internet e é bastante simples. Um vídeo de pouco mais de um minuto é exibido para um grupo de cerca de 30 pessoas. Na gravação, se vêem seis pessoas: três delas com camisetas brancas trocando passes de bola de basquete entre si, e outras três pessoas vestidas com camisetas pretas trocando passes entre si com outra bola de basquete, todos juntos em uma roda. Os exibidores do vídeo propõem aos espectadores que contem quantos passes de bola o time de branco troca, ignorando os passes de bola feitos pelo time de preto. O objetivo dessa tarefa é manter os espectadores bem atentos à tela.

Ocorre que, durante a exibição da dinâmica, uma pessoa fantasiada de gorila passa tranquilamente entre os jogadores de basquete, permanece um instante no centro da tela, e sai do campo de visão do vídeo. Ao final, os organizadores da experiência perguntam para os espectadores quantos passes de bola a equipe branca trocou. Um número bastante grande consegue dizer o número correto. Ao perguntar, porém, quantos espectadores viram um gorila, quase metade das pessoas declarou não ter visto gorila algum no vídeo. E boa parte delas afirma que se uma pessoa vestida de gorila tivesse passado pela tela, elas teriam visto. Essas pessoas só acreditaram na existência da pessoa vestida de gorila ao reverem o vídeo. O experimento já foi repetido com diversos públicos em diferentes países, chegando sempre a resultados muito semelhantes.

Outra experiência descrita no livro diz respeito ao acidente com o ônibus espacial Challenger, ocorrido em 1986, e que teve bastante repercussão nos Estados Unidos. No dia seguinte ao acidente, dois psicólogos norte-americanos pediram a seus alunos que descrevessem  em detalhes como souberam do acidente e o que estavam fazendo naquele momento. Dois anos e meio depois, os psicólogos pediram para os mesmos alunos que preenchessem um questionário relativo àquele mesmo acidente. A constatação foi a de que alguns alunos mudaram completamente seus relatos, indicando terem sabido do acidente por pessoas diferentes das mencionadas no relato inicial, em horários diferentes e atividades diferentes. E confrontados com seus relatos originais, feitos de próprio punho, esses alunos passaram a duvidar que estivessem diante de uma falsa lembrança, insistindo que o último relato era o verdadeiro. Concluíram os psicólogos que uma lembrança falsa poderia ser tão forte que nem mesmo evidências documentais de que aquilo nunca ocorreu poderia mudar o que recordamos.

Estas e outras diversas experiências e casos (crimes, acidentes, fatos históricos) são analisados na obra, que questiona muitas das ideias que o senso comum nos traz sobre nossa capacidade de enxergar algo que está bem à nossa frente, de lembrar com detalhes eventos importantes que testemunhamos, e de determinar a relação de causa e efeito entre dois fatos. Um dos questionamentos centrais da obra diz respeito à crença na nossa própria capacidade de memorizar e descrever eventos que presenciamos com precisão.

Isso nos traz faz pensar em nosso sistema judicial, ainda muito baseado na memória humana. Depoimentos são um dos principais instrumentos de nossas investigações policiais e de nossas ações penais. E mesmo a análise de provas em juízo, por vezes, é baseada em presunções e “regras de experiência” construídas sobre o senso comum, nem sempre resistentes a uma análise mais racional.

Prisões em flagrante de pessoas portando drogas ilícitas por policiais militares, sem prévia investigação policial, por exemplo, são a base de numerosos casos de ações penais por tráfico de drogas no Brasil. Tais profissionais de segurança pública participam de dezenas de ocorrências semanais. É razoável se perquirir acerca da integridade da memória dos policiais chamados a depor em juízo anos após os fatos sobre os quais apresenta seu relato.

Para ilustrar como pode ser problemático o uso da memória humana, sem boa corroboração em outras formas de prova, lembremos o caso da dançarina Barbara Querino condenada em primeira instância a prisão pelo roubo de um carro na cidade de São Paulo. As vítimas reconheceram Barbara “sem sombras de dúvidas” como um dos assaltantes presentes no local. O reconhecimento foi feito pessoalmente em juízo e, na fase policial, por meio de uma fotografia compartilhada em aplicativo de mensagens.

Barbara havia apresentado um álibi, indicando que no dia do assalto estava na cidade do Guarujá, na companhia de outras pessoas. Barbara acabou sendo absolvida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, após permanecer quase dois anos presa. Não está claro por qual motivo seu álibi não foi levado em consideração em primeira instância.

A imprensa tem divulgado casos semelhantes de pessoas que, presas e acusadas de determinados crimes, apresentaram álibis que foram ignorados inicialmente pelo sistema judicial, diante de reconhecimentos feitos por vítimas “sem sombra de dúvidas”.

O próprio reconhecimento feito pela vítima, como prova principal, às vezes única, deve ser aceito com certas cautelas. Já estão sendo bastante discutidos no Brasil e fora dele diversos casos de reconhecimento equivocado de acusados feitos por vítimas que indicavam ter um grande grau de certeza.

Não à toa, o Superior Tribunal de Justiça, mudando entendimento anterior, determinou que o reconhecimento do acusado pela vítima deve observar obrigatoriamente as formalidades do artigo 226 do Código de Processo Penal (HC 598.886/SC, relator Ministro Rogério Schietti Cruz). Assim, a pessoa a ser reconhecida deverá ser colocada ao lado de outras que com ela tenham semelhança física, a fim de garantir um maior grau de acuracidade do reconhecimento.

Uma crença errônea de nosso sistema judicial acerca da capacidade humana de atenção, de memorizar e descrever com precisão eventos presenciados o torna permeável a julgamentos sutilmente influenciados pelo racismo, misoginia, lgbtfobia, classismo, e xenofobia presentes na sociedade.

É o momento de se questionar a atuação da polícia judiciária. Depoimentos e reconhecimentos  que confirmam hipóteses acusatórias e confissões não podem ser o fim do inquérito. Medidas que levem à  corroboração de provas testemunhais devem ser utilizadas (perícia técnica, inclusive exame de local, busca por registros documentais, fotográficos e de vídeo, coleta de depoimento de outras pessoas no  local, análise da linha do tempo e do espaço das narrativas apresentadas) e dispensadas apenas quando não possíveis de serem praticadas.

Os álibis apresentados pelos investigados, igualmente, merecem ser verificados pelos meios de prova disponíveis, não se deixando sua busca como encargo da defesa, anos depois, na fase judicial do processo, quando poderão nos dar um menor juízo de certeza.

Já no processo judicial, é um desafio fazer com que os depoimentos sejam tomados sem que se passe muito tempo dos fatos que se busca apurar. Mas é preciso, ainda, que a análise de provas pelo juiz não se deixe contaminar por preconceitos correntes na sociedade e ideias do senso comum acerca da capacidade de atenção e memorização do homem.

Assim, a refutação de um álibi da defesa exige fundamentação racional. Utilizar os antecedentes de acusados para fundamentar a análise da prova do fato novo que se julga, por exemplo, é grave equívoco, pois pode facilmente levar a condenações injustas. Simplesmente acolher o depoimento de policiais ou outras testemunhas em detrimento do depoimento de moradores de rua, da periferia, de favelas, ou de profissionais de atividades menos respeitadas da sociedade (prostitutas, por exemplo), sem que haja corroboração mínima, pode gerar equívocos de julgamento.

O fato de o acusado ter parentesco ou relações sociais com pessoas que já foram condenadas por outros crimes também não torna, por si só, suas declarações falsas. O mesmo se diga de usuários de drogas, alcoólatras, viciados.

Depoimentos de quem quer que seja podem resultar de erros de avaliação, atenção e memorização. Daí a necessidade de corroboração, sempre que possível, por registros o mais objetivos possíveis.

É preciso que identifiquemos os gorilas invisíveis no processo penal brasileiro se quisermos produzir julgamentos não contaminados pelos preconceitos que transitam em nossa sociedade. Este é um dos vários caminhos que enxergo como necessários para atacar a seletividade de nosso sistema penal.

 

Eduardo Pereira da Silva é juiz federal em Goiânia

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