Não foram poucas as controvérsias protagonizadas, em vida, pelo sociólogo e político Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), no âmbito das discussões étnicas no país. Negro, ele chegou a ser chamado de “preto racista” e comumente era visto como alguém que debochava do tema; em relatório produzido pelo regime militar, ao qual ele teve acesso em 1965, foi definido como “mulato metido a sociólogo”.
Lançamento da editora Zahar, o livro Negro Sou ajuda a compreender a importância de sua visão para o entendimento da questão racial no Brasil. Trata-se de uma seleção de textos sobre a temática, escritos entre 1949 e 1973, muitos deles inéditos em livro, que abordam o assunto. De forma pioneira — mas que, aos olhos de hoje, podem soar racistas. Principalmente por conta de uma ideia presente de que o Brasil vivia uma democracia racial.
“[Esses textos] têm de ser entendidos dentro do jogo político do Guerreiro”, explica à DW Brasil o historiador e sociólogo Muryatan Santana Barbosa, professor na Universidade Federal do ABC e organizador do livro recém-lançado. “O que se pretendia era construir um pacto da democracia racial que enfrentasse o racismo realmente existente.”
Conforme explana Barbosa na própria introdução do livro, primeiramente é preciso interpretar essa visão de “democracia racial” sem anacronismos. Naquele contexto, em que havia segregação racial explícita nos Estados Unidos, apartheid na África do Sul e outros exemplos do tipo pelo mundo, o racismo existente no Brasil era entendido como algo menos rígido. “Ou seja, apesar de haver discriminação e preconceito, a visão é de que no Brasil não haveria ódios raciais. Guerreiro deve ser entendido nesse contexto”, escreve o historiador.
Racismo estrutural
O outro aspecto é que um dos pilares da teoria sociológica de Guerreiro Ramos, em sua proposta de criar um projeto nacional, era a necessidade de descolonizar o conhecimento e, assim, também as relações étnico-raciais no Brasil. Nesse sentido, como aponta Santana no texto que consta do livro, Ramos foi pioneiro “na percepção de que o ‘problema racial’ seria parte da reprodução de uma lógica colonial no país […] tanto em relação ao negro quanto em relação ao branco”.
Atualizando para a visão e a terminologia contemporâneas, ele foi o precursor daquilo que hoje se entende como “racismo estrutural”. “Nesse sentido, negros, brancos e ‘brancoides’, no Brasil, eram todos vítimas da condição colonial que por aqui se instalou”, comenta à DW Brasil o sociólogo e engenheiro Ariston Azevêdo, autor do projeto de extensão Vida e Obra do Sociólogo Alberto Guerreiro Ramos e professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Ele explica que, na teoria de Ramos, o negro acabou marginalizado na sociedade brasileira por conta, de um lado, da “mentalidade colonial” e, de outro, “o modo subserviente […] como o Brasil se integra ao mundo moderno eurocêntrico”. “Assim, para compreensão da sociedade brasileira, haveríamos de partir dessas características, pois elas nos foram estruturantes”, diz ele.
Ramos defendia que a condição do negro só melhoraria se o Brasil saneasse a situação colonial, alterando a própria estrutura social. “A principal contribuição de Guerreiro Ramos para essa questão está nessa vinculação direta entre nossa situação colonial e o problema de relações raciais que aqui instituímos desde séculos. Nesse sentido, ele foi, de fato, pioneiro”, argumenta Azevêdo.
“Poderíamos, sim, entendê-lo como um precursor dessa problemática do racismo estrutural”, afirma Santana. “Depende do que entendemos por racismo estrutural, qual estrutura do racismo de que estamos falando.”
“Guerreiro Ramos foi bastante pioneiro na interpretação do racismo como uma consequência da relação que se estabeleceu e entre povos conquistadores e conquistados”, enfatiza o pesquisador.
Cassado pela ditadura
Nascido em Santo Amaro da Purificação, na Bahia, Alberto Guerreiro Ramos graduou-se em ciências pela antiga Faculdade Nacional de Filosofia, do Rio de Janeiro, em 1942. No ano seguinte, bacharelou-se em Direito, também no Rio. Como professor, atuou no Instituto Superior de Estudos Brasileiros e nos cursos promovidos pelo Departamento Administrativo do Serviço Público.
“Ele pertenceu à primeira geração de sociólogos do Brasil”, comenta em vídeo divulgado no YouTube da Universidade Federal de São Carlos o sociólogo Alan Caldas, cuja tese de doutorado, defendida na instituição, foi sobre a obra de Ramos. “Como homem negro vivendo no pós-abolição, sua vida foi uma espécie de improviso jazzístico: foi poeta, ensaísta, crítico literário, servidor público, assessor do presidente Getúlio Vargas, intelectual orgânico de um dos principais movimentos negros do Brasil, o Teatro Experimental do Negro. […] Foi ensaísta e articulista político e também deputado federal.”
Para os especialistas em sua obra, a carreira de Ramos como um pensador influente no Brasil acabou interrompida pelo golpe militar de 1964. Da primeira leva de políticos cassados pelo regime ditatorial, ele acabou se radicando nos Estados Unidos, onde lecionou na University of Southern California.
E aí, o seu projeto sociológico ficou em segundo plano, frente àquele que era principalmente desenvolvido pelos intelectuais da Universidade de São Paulo. “Quando ele retornou ao Brasil, no início dos anos 1980, tudo havia mudado. O protagonismo da sociologia e ciência política praticados no Rio de Janeiro foi obliterado totalmente pela sociologia e ciência política da USP”, pontua Azevêdo. “Aliás, é bom lembrar que, desde o início dos anos 1950, Guerreiro Ramos sempre se posicionou contra a sociologia acadêmica da USP, em especial àquela protagonizada por Florestan Fernandes.”
Para Ramos, era uma questão que opunha os produtores de uma legítima sociologia brasileiro aos, em sua visão, consumidores de uma sociologia estrangeira enlatada.
Para Azevêdo, isso foi um dos pontos que fez de Guerreiro Ramos um sociólogo esquecido – vítima de um “proposital esquecimento”, em suas palavras. Além de sua “conexão a uma tradição de homens de ação, pensadores não vinculados a instituições universitárias”.
“Em minha opinião, o esquecimento de Guerreiro Ramos se deve mais ao projeto de nação e de ciências sociais que ele abraçou do que à cor de sua pele”, acrescenta Azevêdo. “Obviamente que sua negritude incomodava a brancos e a ‘brancos’ entre aspas, afinal somos um país racista. Por diversas vezes sofreu enxovalhos públicos de seus desafetos. Mas, ao fim e ao cabo, eram suas ideias e suas posições políticas que causavam mais incômodos, tanto à direita quanto à esquerda.”
Santana ressalta que outro motivo para esse esquecimento foi o fato de que Ramos “foi um defensor de um nacionalismo brasileiro, um projeto nacional brasileiro, e isso fico ufora de moda por um tempo”. “O fato de ele ser negro pode ter alguma importância, mas acho que é uma questão menor”, argumenta. “Ele era um autor bastante polêmico e isso trouxe animosidades também à sua época, e pode ter insuflado um racismo contra ele, mesmo que velado.”