José Antonio Correa Francisco: Liberdade para viver

“Eu sou muito alegre. Todas as manhãs eu canto. Sou como as aves, que cantam apenas ao amanhecer. De manhã estou sempre alegre. A primeira coisa que faço é abrir a janela e contemplar o espaço”. (Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus)

 

133 anos de liberdade…

Passei boa parte da infância e toda a adolescência sendo chamado pelos colegas da escola de “Zé Preto”. Para alguns, “Zé Pretinho”; para outros, “Criolo”, “Criolina” ou só “Zé Preto”. Foi o presente da ousadia de meus pais por me matricular numa escola particular, na Zona Sul Paulistana, nos anos 1980.

A escola não existe mais, nem os meus inocentes coleguinhas fazem parte da minha vida. Não sei o que são e, provavelmente, poucos sabem o que faço, atualmente.

Sobrevivi ao estigma, embora jamais me esqueça dele. Por diversas razões, passei incólume às abordagens das forças policiais durante a vida, por conhecer e utilizar minimamente a chamada norma culta, a qual me socorria nesses poucos momentos de tensão e violência.

Provavelmente, o meu cabelo liso e a minha tez parda, ao passar dos anos, diminuíram o estigma fenotípico da negritude que marcara a minha jovem vida escolar, onde só havia meninos brancos.

Provavelmente a casa em que eu morava com meus pais e irmãos, em bairro de classe média baixa, destacando-se das demais, não convidava ou estimulava os policiais a invadi-la a esmo, por mero capricho ou maldade.

O “Zé Preto” existiu naquele meio, onde deveriam ser desenvolvidas as habilidades da aprendizagem, rodeado de baixa auto-estima e apoucada sensibilidade social, fruto de um sistema histórico racializado e excludente, que teima em nos perseguir, que teima em nos aprisionar.

Como Zumbi, como Dandara, os grilhões foram rompidos daquela opressão, embora fosse necessário o meu afastamento da minha terra natal, onde cresci e onde todos os meus familiares ainda vivem, com suas sensibilidades particulares, com os seus sofrimentos próprios.

A cada dia, muito lentamente, os negros ampliam sua presença na vida comunitária. Muito lentamente, e os números oficiais confirmam a lentidão da tão sonhada liberdade, pois é a mulher negra a cidadã que menos renda possui, é o homem negro o que tem a menor expectativa de vida, é a juventude negra, entre 14 e 29 anos, a mais desempregada e com maior dificuldade para obter renda digna.

Apesar do sensível crescimento de jornalistas, médicos, advogadas, artistas, arquitetas, escritores, músicos, atletas, cantoras e tantas outras profissionais negras e negros, ampliando-se o lugar de fala e a relevante representatividade social, continuamos sendo mortos, na periferia, nos supermercados, nas abordagens policiais, em plena luz do dia.

Continuamos sofrendo violências gratuitas, nos mais diversos ambientes públicos e privados, incluindo programas de entretenimento; repisando-se toda a história de agressão, de violência, de coisificação e de abuso dos corpos negros, em moto contínuo.

Quando o Professor Silvio de Almeida conceitua o racismo estrutural, enfatiza que o sofrimento direcionado à população negra é um fenômeno histórico e político, base fundante e constitutiva de nossa sociedade, a fim de possibilitar o privilégio da população não negra.

Como enfatizado anteriormente, as estatísticas sociais são induvidosas: população carcerária – maioria negra; mortes pela pandemia da doença do coronavírus: maioria trabalhadora de baixa renda e negra; postos de gestão e administração no serviço público e no serviço privado, representando os melhores salários: minoria negra.

Na pirâmide de Maslow (em ordem crescente: fisiologia, segurança, amor, estima e realização pessoal), muitos de nós não conseguem passar do primeiro degrau, pois somos privados pelo sistema econômico e político de estabilidade alimentar e de condições sanitárias mínimas de existência digna.

Alguns não passam do segundo degrau, pois lhes faltam trabalho e recursos materiais para a sobrevivência. Poucos conseguem alcançar a realização pessoal, o último degrau dessa escala.

Numa perspectiva social, o conceito psicanalítico de pulsão da vida poderia ser resumido no mecanismo individual, consciente ou inconscientemente considerado, que visa à perpetuação da sobrevivência, a multiplicação da espécie e a preservação dos laços dialógicos de convivência em sociedade.

Por outro lado, em sentido diametralmente oposto, a pulsão da morte almeja o fim da existência, o desprezo pela sobrevivência própria ou de um grupo específico, o final do desejo e a posse sádica do corpo alheio, no domínio da intolerância e do cancelamento do outro e da eliminação do inimigo.

Se pudéssemos nos afastar emocionalmente da abordagem assassina da polícia militar ocorrida na chacina na Comunidade do Jacarezinho, Zona Norte Carioca, uma semana antes do aniversário da Abolição, onde 29 jovens negros foram executados, veríamos que o Estado, se e somente se, lembra-se da existência da população carente e periférica na hora da morte, da dor, da intolerância e da eliminação.

Nunca houve nenhuma ação efetiva do Estado Brasileiro em prol da vida da população negra, notadamente nas comunidades periféricas dos grandes agrupamentos urbanos, capaz de minorar os efeitos destruidores, físicos e emocionais, individuais e coletivos, decorrentes das ações de guerra e de extermínio da polícia militar, nessas comunidades.

Ainda tivemos o desgosto de ouvir representantes eleitos, cúmplices desse estado racista e assassino, aplaudindo a ação criminosa contra o nosso povo. Não deveríamos esperar outra coisa dessa gente má e perversa.

Ainda que o número de vítimas seja assustador e alarmante, esse tipo de conduta não é novidade alguma para todas e todos os brasileiros, de qualquer cor, mas repetição inexorável da pulsão de morte de parte da sociedade brasileira, que despreza a vida digna da população negra.

A fortuna da vida poupou-me da violência física, embora não o tenha me poupado da violência psicológica, para muitos, naquele tempo, travestida de gracejos ou recreação. Boa parte de mim morreu, há muito tempo, para que eu sobrevivesse, atualmente.

Milhares de irmãos e irmãs, porém, não sobreviveram, porquanto diariamente perdem suas vidas, sem ressurreição ou outra forma de “revivência”, e não há gracejos ou anedotas que reconforte os familiares e amigos que os perderam.

Mortos pela polícia. Mortos pela necessidade. Mortos pela liberdade fantasiosa que nos foi legada pela nossa sociedade racista e excludente.

“Não me deixa, não vai embora, vão me matar!”. Queria se entregar aos Direitos Humanos, mas os policiais disseram: “Aqui ninguém se entrega, vai sair morto! E o mataram a facadas no quarto, não me deixaram socorrê-lo” – (El país Brasil, 13.5.2021)

Inexiste empatia social às negras e aos negros. Talvez, jamais existiu, mas continuaremos a lutar, a sobreviver e a vencer.

 

José Antonio Correa Francisco é Juiz do Trabalho Substituto da 11ª Região (AM/RR) e membro da AJD (Associação Juízes para a Democracia).

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