Kathlen e os laços de forca

Que sigamos acompanhando o caso e lutando por justiça para que não permaneça impune este horror que ofende a todos nós

É que eu estava de férias, finalmente de férias! Fui à praia, na verdade fui à ilha. Cerca de 30 km de extensão de terra cercado de água por todos os lados, a Ilha do Mussulo, a apenas 25 minutos da minha casa e mais uns 5 minutos de barco. De um lado uma baía de águas calmas e claras, do outro o Oceano Atlântico. Se a Terra fosse plana daria até pra ver vocês.

Sempre penso em vocês, mesmo nas férias. Procuro saber, leio notícias, os laços permanecem. Me lembrei do Caio, eu parecia o Caio nessas férias. Não sei se Caio estava de férias, mas ele estava em Paris quando escreveu a crônica “De laços, seios, sábados e tormentas” para O Estado de S. Paulo, era 1/5/1994.

Caio Fernando Abreu escreveu num sábado: “Comprei o Le Monde e o Libération, sentei no café da esquina para praticar meu mórbido e pátrio esporte diário: procurar notícias do Brasil, que não desato esse laço. Nunca tem.”

Desta vez tinha, uma notícia horripilante, um caso de violência em uma das cidades mais belas que Caio conhecia do Brasil, um evento violento em Recife. “Dobro o jornal com cuidado e vergonha, para que ninguém leia.”

A internet não é jornal, não dá para dobrar e esconder a notícia, mas dá pra sentir muita vergonha. Foi assim, no meio das férias, que li a notícia do assassinato de Kathlen Romeu e seu bebê, ainda na barriga. Logo eu, que já estava planejando que esta coluna falaria sobre a importância de descansar, que nem tudo é luta, que a paz existe, que às vezes é só usufruir do direito de receber tudo de bom. Talvez seja uma maldição, porque acabei de perceber que toda vez que eu penso isso, uma mulher negra é assassinada.

“O Brasil me falta e dói como dizem doer a ausência de um membro amputado”, eu concordo, Caio. Kathlen podia ser uma amiga próxima, já que morava no mesmo bairro que a minha família. Então, aqui de Luanda, ou mesmo se estivesse em Paris, eu sinto o aperto do laço. E quantas palavras de dor e tristeza eu li, quantos “sem palavras”, quantos “sem forças” e ainda o choro da amiga Flávia Oliveira ao vivo que só consegui assistir por 5 segundos e depois precisei parar tudo pra chorar junto. Importante dizer que a narrativa da imprensa tem papel fundamental neste e em outros casos.

Dias antes do assassinato de Kathlen o projeto Atlas das Juventudes divulgou os dados da pesquisa “Jovens: Projeções Populacionais, Percepções e Políticas Públicas” e contou que os jovens brasileiros estão cada vez mais tristes. De 0 a 10 pontos, 6,4 é a média de autoavaliação da felicidade entre a população de 15 a 29 anos. Outro dado é que, em 20 anos, temos o menor número de jovens no país e a tendência é cair cada vez mais. A pesquisa aponta que isso se deve principalmente ao fato de mulheres de 19 a 24 anos estarem diminuindo a taxa de fecundidade. Vinte e quatro anos era exatamente a idade de Kathlen e, isso não está em pesquisas, mas eu sei que as mulheres pretas são as que mais sentem medo de ter filhos. Qual mulher quer colocar um pretinho ou uma pretinha no mundo, fazer de tudo para que ela ou ele seja uma pessoa de bem, como disse a mãe de Kathlen e depois, como disse a minha mãe, vir um “filho da p*ta do inferno” e levar o que você tem de mais precioso?

Que sigamos acompanhando o caso, lutando por justiça para que não permaneça impune este horror que ofende a todos nós. “E, no entanto, eu não desato esse laço. Tão apertado, parece forca.”

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