Liberdade caça jeito

Quem reivindica direitos, demanda a democratização do poder, luta contra o poder patriarcal e racista passou 2015 navegando em mares bravios. A crise política veio se agudizando desde o começo do ano e as incertezas e riscos de perda de direitos se sucedendo.

Por Guacira Cesar de Oliveira, Joluzia Batista e Masra de Abreu do CFEMEA.

Enviado por Sheila Sabag via Guest Post para o Portal Geledés

A vitória da candidatura de Eduardo Cunha para a Presidência da Câmara foi a primeira de uma série de derrotas do governo Dilma Roussef. Para além da Praça dos Três Poderes, o jeito Cunha de manobrar, burlar as regras e presidir foi nefasto ao processo democrático, com implicações severas sobre os direitos humanos e, em especial, sobre a agenda feminista.  Salvaram-se, por pouco, a Lei do Feminicídio e a Lei Complementar 150, do Trabalhado Doméstico (essa última com cortes graves).

A presidência de Cunha deu lastro para os conservadores e fundamentalistas fazerem palanque e amplificarem as vozes da reação na arena política, vociferando seus discursos homo-lesbo-transfóbicos, contra o que eles designaram como “ideologia de gênero”, pela criminalização do aborto, contra a diversidade das famílias e por mais recursos públicos para as igrejas e seus pastores.

Em 2015, tudo o que conseguimos instalar no Poder Público para afirmar os direitos sexuais e direitos reprodutivos, a liberdade sexual e a autonomia reprodutiva; para enfrentar a criminalização das mulheres e a luta pela legalização do aborto esteve em risco. A guerra antidireitos tomou conta da arena política nesses confrontos e em outros, também de alta relevância, como o sucedido em relação à redução da maioridade penal, a reforma política, o ajuste fiscal, a lei antiterrorismo, a questão das terras indígenas.

2015 foi também um ano de manifestações públicas dos movimentos feminista e de mulheres. Certamente, estivemos entre as mobilizações mais importantes que ganharam as ruas. A amplitude dessas movimentações se origina em processos contínuos e consistentes, como os que construíram a Marcha das Margaridas (70 mil mulheres), em agosto; seguida da Primavera Feminista, iniciada em outubro e bem viva até o presente momento, ocupando as ruas e praças de muitas cidades brasileiras e se expandindo vertiginosamente nas redes sociais com as hashtag #ContraoPL5069, #ForaCunha, #meuamigosecreto e #primeiroassedio. Por fim, veio a Marcha Nacional das Mulheres Negras – 50 mil pessoas – em novembro. Um fato histórico, que a mídia tentou invisibilizar, mas que a história vai ter de registrar. Todas vieram carregando as bandeiras dos Direitos Sexuais e Reprodutivos e fazendo ecoar nossas vozes contra os fundamentalismos religiosos, cada vez mais expressivos e poderosos no sistema político, em especial no Congresso Nacional.

Como afirmou Carmen Silva[2],

(…). Este ano, com a Marcha das Margaridas, a Primavera Feminista e a Marcha das Mulheres Negras, iluminamos a cena do campo político dos movimentos sociais e estamos ajudando a construir as pontes para o seu fortalecimento.

O monitoramento coletivo e colaborativo do Congresso Nacional, que começamos a realizar este ano, acompanhou 81 proposições relacionadas aos direitos sexuais e reprodutivos no Congresso Nacional e revelou o quão agudo é o antagonismo entre as demandas dos movimentos de mulheres e feminista e a agenda do Congresso Nacional.

Nesse ano, como em nenhum outro nas três últimas décadas, a velocidade do atraso ganhou força máxima. Apesar da representação política da Bancada Evangélica não ter crescido quantitativamente na última eleição, o fato de a Presidência da Câmara estar sendo exercida por uma de suas principais lideranças foi decisivo para pautar a discussão e acelerar a tramitação de projetos do interesse dos grupos antidireitos, formados pelas Bancadas BBB – Bíblia, da Bala e do Boi.  Ademais, o fato de o governo depender do PMDB (partido de Eduardo Cunha) para evitar a instalação do processo de impeachment da Presidenta, também contribuiu para a  potencialização dessas forças conservadoras.

De janeiro a dezembro, a crise política só se agravou. O governo e o Congresso se distanciaram cada vez mais da sociedade, inundados por denúncias de corrupção, ameaçados pela operação Lava-jato, assolados pela ganância do poder econômico, que não deu trégua e continuou exigindo ajuste fiscal para desonerar o capital. A crise econômica foi alimentada pela crise política, num círculo vicioso do toma-lá-dá-cá que agilizou a aprovação de medidas de caráter antipopular e antidemocrático, como as contidas no próprio ajuste fiscal e na lei antiterrorismo.

A mesma lógica orientou a reforma ministerial, com repercussões muito negativas sobre os pontos de apoio da agenda de enfrentamento às desigualdades e de defesa dos Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos na Esplanada dos Ministérios. A reforma acabou com a SPM, SEPPIR e SDH para restar um Ministério só para tudo. E o Ministério da Saúde foi presenteado ao PMDB, sob o comando do Deputado Marcelo Castro (PMDB-PI), que nenhum compromisso tem com o direito a saúde, nem tampouco com os DSDR.

Já em dezembro, o processo de impeachment contra Presidenta começou a correr. Simultaneamente, as denúncias contra Cunha ganharam fôlego e os crimes que cometeu começaram a ser investigados. Cunha, que havia iniciado 2015 com aspirações de ser candidato à presidência da República, terminou o ano com sua carreira política em franca derrocada.

As forças que até aqui vieram dominando a arena política, à direita e à esquerda, estão profundamente desgastadas. As bases parlamentares de apoio ao governo estão desmoronando e produzindo um verdadeiro tsunami, sujando ainda mais a trajetória política do PT.

As bancadas governistas e oposicionistas, tão emaranhadas nas teias do patrimonialismo, via de regra, apresentam-se incapazes de reverberar a insatisfação popular.

Enquanto o desastre do tsunami de lama vinha de Mariana e avançava até o litoral brasileiro, na Praça dos Três Poderes, o desastre político escorria por todo o país, sob protestos, mas sem alternativas. Em que pese a importância das manifestações, a distância entre se protestar e construir (debater, convergir, somar forças em prol de, viabilizar politicamente alternativas) é enorme e o tempo para percorrê-la, certamente, não é pequeno, implicando riscos.

Entre os movimentos e as forças políticas que estão no campo de luta por direitos, ainda há muito por fazer, pontes a construir, convergências a realizar, para a articulação de uma agenda coletiva consistente, alternativa: estratégica para superar a crise. Dar sentido, gerar, fazer crescer e acontecer uma nova onda democrática é tarefa que toma bastante tempo… e como o tempo não para, já começou.

Coincidindo com a análise feita por Carmen Silva, detacamos:

“Também faz parte do contexto aquilo que a coalizão puxada pela esquerda conseguiu produzir neste período de governo e as escolhas políticas feitas pelos movimentos sociais, muito dos quais mais assopraram que bateram, no sentido de ter sido restrita a capacidade de análise crítica, de mobilização e pressão. O campo chega em 2015 gelatinoso e cheio de buracos, algumas ilhas ligadas umas às outras por fiapos, mas com baixa capacidade de gerar uma onda de movimentação social, apesar das inúmeras tentativas do primeiro semestre de 2015.[3]”

Estamos diante de uma crise política profunda, que afeta, desestabiliza e coloca em risco algumas forças políticas forjadas nestes 30 anos de democracia. Elas perderam adesão, se retraíram, não têm convicção sobre o rumo a seguir.

Outras possibilidades e novas forças vieram germinando ao longo dos últimos anos e, em especial, em 2015. Assim, partindo da luta feminista e todas as alianças construídas em defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, que é onde nos situamos, vemos com otimismo o surgimento de inúmeros coletivos, comunidades virtuais, novas formas de organização, de expressão, outros sujeitos coletivos que estavam alijados da arena política gerarem convergências entre si e mobilizarem protestos articulados. São novidades do fazer político na arena pública.

Como afirmou Natália Maria[4],

(…) evocamos sobretudo imprevistos afirmativos desde ‘a voz escondida que está em todas as partes’…, pois, é importante afirmar que ‘liberdade caça jeito’. Queremos também coragem para que possamos nos surpreender em magias incalculáveis, como nos ensinam os marcados e resilientes Mestres e Mestras Brincantes das Culturas Populares (…) vivos patrimônios da vida em coletividade, sementes além de extermínios, ciências e poderes da nossa imensa capacidade de reinvenção mesmo que imersos em intensas privações, também insurgentes e jamais resignadas às explorações.

A longa trajetória brasileira de política autoritária e seus espaços sempre propícios para os “salvadores da pátria” e golpistas, como os que vimos no Paraguai e em Honduras, nos alertam quanto ao risco de retrocessos. Por outro lado, a defesa intransigente da democracia, aclamada nas manifestações realizadas pelos movimentos “insurgentes” contra a perda de direitos, nos salvaguardam e nos indicam que todo o esforço empreendido na produção de informação, na articulação da teia de disseminação entre as redes, entidades e ativistas de direitos humanos é próspero para a construção da resistência aos retrocessos.

 

[1] Guacira, Joluzia e Masra integram a equipe do CFEMEA. O artigo traduz o nosso debate sobre o balanço de 2015, a partir da incidência política feminista no Parlamento em defesa dos direitos sexuais e reprodutivos.

[2] SILVA, Carmem. Mulheres negras contra a direita fascista. http://soscorpo.org/mulheres-negras-contra-a-direita-fascista/ . dezembro, 2015.

[3] Idem ao anterior.

[4] Natália Maria. Abrição, memória, movimento e giro do mundo – DjumbaiAR, djumbaiandohttp://www.cfemea.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4523&catid=412&Itemid=194. Dezembro, 2015.

 

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