Literatura: O meio sol, o sangue e o luto de Chimamanda

É uma felicidade quando nos deparamos com um escritor ou uma escritora excepcional. Mesmo abordando em “Meio sol amarelo” um tema lancinante – a desumana Guerra de Biafra, na qual a fome matou milhares de crianças – a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie foi capaz de me presentear com horas de prazer ao ler seu premiado romance. Com pequenas variações cronológicas e usando três pontos de vista, o do menino ibo Ugwu, o do jornalista inglês Richard, que sonhava em ser escritor, e o de Olanna, professora de Ciências Sociais, que tem uma irmã gêmea não idêntica, Kainene, Chimamanda escreveu um livro de formato clássico, nos moldes das grandes obras do século XIX. No Brasil, o romance, que o jornal britânico “The Guardian” considerou “um marco na ficção”, já se encontra na sexta reimpressão, sendo que a última foi realizada pela editora Companhia das Letras em 2018.

Por Cecilia Costa, do Jornal do Brasil 

Monica Schipper/WireImage

Absolutamente dona de sua arte e engenho, a autora nigeriana reveza dois blocos cronológicos, o do início e o do fim dos anos 1960. No início, ela nos apresenta os personagens e o cenário político da Nigéria, no qual irá explodir um golpe do povo ibo e um contragolpe hauçá. No corte cronológico do fim dos anos 60, Chimamanda descreverá com cores fortes, duras, a Guerra de Biafra, que ocorreu entre 1967 e 1970. Nela, o povo ibo, do Sudoeste da Nigéria, país que havia ficado independente da Inglaterra em 1960, tentará se separar dos nigerianos do Norte, ou seja, dos dominantes e militarizados hauçás, criando a sua própria República. O sonho de Biafra será estraçalhado pelas forças bélicas muito mais fortes dos hauçás, que contavam com apoio da Grã-Bretanha e da Rússia.

O título do livro é inspirado pela bandeira criada pelos rebeldes ibos. Deixemos que professora Olanna a descreva: “Ela ensinou (aos alunos de sua classe) o significado da bandeira biafrense. O vermelho era o sangue dos parentes massacrados no Norte, o negro era em sinal de luto pelos mortos, o verde era pela prosperidade que Biafra teria, e, por fim, o meio sol amarelo, que significava um futuro glorioso”. Futuro este que não aconteceria. Mas 50 anos após o sangrento conflito, a bandeira dotada de força mítica continua sendo hasteada por novos revolucionários.

Capa do livro/Divulgação

Chimamanda vai nos introduzindo em sua história paulatinamente. Sua escrita é ágil e simples, movimentada pelos fatos contínuos e pelos diálogos muito bem delineados. O romance começa com o menino Igwu chegando do campo para trabalhar na casa do professor de Matemática Odenigbo, que partilhava das ideias separatistas de Biafra e costumava se reunir com outros professores e intelectuais na sala de sua residência a fim de debater o futuro. É muito gozada a chegada de Igwu, que não conhecia geladeira, água em torneira, e que nunca pudera em seu povoado comer carne “todos os dias”. Como o “patrão” diz que poderia ir à cozinha e comer o que encontrasse no armário refrigerado, ele fica maravilhado ao ver um frango inteiro na geladeira e, depois de comer uma perna, leva pedaços no bolso para o quarto, a fim de poder compartilhar um dia sua nutritiva riqueza com a família.

Ao chegar da faculdade, o professor sente o cheiro e explica ao menino que não precisava levar comida para o quarto. Comida explica, fica na mesa da sala ou na cozinha. Outra cena hilariante é quando o menino, a fim de agradar de todas as formas ao empregador, resolve passar as meias do patrão. A meia estorrica na base do ferro. O patrão se enfurece e vai para a faculdade sem meia. Para sair da dificuldade, Igwu cozinha um arroz maravilhoso para Odenigbo, que o come prazerosamente ao chegar em casa. Já tinha esquecido o incidente com a meia. Era um homem de bom coração. E comunista.

Ao ser informado sobre o baixo nível de escolaridade de Igwu, o professor de Matemática decide que o rapazinho tinha que estudar. E o coloca na escola dos filhos dos professores do campus. Este estudo irá render. Com a passagem do tempo, Igwu, que aprendia tudo muito rápido, inglês inclusive, um dia escreverá um livro, “O mundo ficou calado quando nós morremos”, realizando o sonho que Richard, o jornalista inglês, não conseguirá realizar, tamanho o choque que levaria com a crueza da guerra.

Apenas quem não estava vivo neste planeta no final dos anos 1960 não tem ciência dos horrores da Guerra de Biafra, que foram estampados nos jornais por meio de dilacerantes fotografias, fazendo milhares de pessoas se condoerem com a sorte das crianças ressecadas pela fome e de mães macérrimas de peitos caídos, sem leite. “Meio sol amarelo” tem esta função: relembrar, não deixar que Biafra e a guerra impiedosa sejam esquecidas. Pois os ibos foram trucidados pelos hauçás. Calcula-se que os mortos tenham ultrapassado a casa de um milhão. A escritora negra nos introduz em todos os acontecimentos com eficácia e compaixão.

Os eventos vão se sucedendo, e há também muito amor e amizade no livro. Laços afetivos. Odenigbo se casará com Olanna, uma das irmãs, a mais doce e bela, e Richard se unirá a Kainene, que trabalhava para o pai, um riquíssimo empresário que atuava nas áreas do cimento e do petróleo. Kainene fazia negócios com extrema frieza, sendo capaz de pagar propinas nas licitações quando necessário, sem sentir a mínima culpa por isso. Richard, homem frágil e inseguro, amava a independência e a força de sua amiga ibo, que foi se entregando ao inglês aos poucos. Olanna sofreria muito com Odenigbo, porque a mãe do rapaz, que viera de um povoado muito primitivo, a odiava por ser uma intelectual. E numa viagem da nora faria, por meio de bruxedos e pomadas mágicas, que sua acompanhante transasse com o filho. Nasceria um bebê, a menina Baby, que Olanna, passados o ciúme e a raiva, adotaria. Ela não podia ter filhos.

Mas o que importa mesmo é a guerra, é claro. As mortandades. Os massacres. Os bombardeios. Os raids aéreos. A construção de bunkers para proteção dos que se encontravam na terra, sendo alvo das bombas. A maldade da força maior, a dos hauçás, contra os muito mais fracos soldados e civis ibos, que ficaram sem ter o que comer e sem ter onde morar, passando a se abrigar em campos de refugiados. Há cenas como o de uma mulher que leva num trem, numa cabaça, a cabeça de sua filha morta, com os cabelos trançados, e de um criado de Kainene que é morto por uma bomba. Sua cabeça se separa do corpo, mas o corpo continua a correr. Enquanto isso “o mundo estava calado”, como diz o título do livro de Igwu. Que acabará por participar da guerra, nos apresentando o conflito de perto. Com estupros de alma, mente e de corpo. Estômagos embrulhados pelo avesso, corações sufocados, tantas são as mortes e os desaparecimentos de pessoas queridas.

Traduzida para mais de 30 línguas, Chimamanda recebeu com “Meio sol amarelo” o Prêmio Orange de Literatura, um dos mais prestigiados prêmios do Reino Unido para a ficção escrita em inglês. O livro foi levado para a tela em 2013. A autora nigeriana também escreveu os romances “Hibisco roxo”, publicado em 2011, e “Americanah”, best-seller editado em 2014, vencedor do National Book Critics Circle Award, cujo enredo está sendo negociado com uma produtora de filmes. São de sua autoria ainda a coletânea de contos “No seu pescoço” (2017) e os ensaios “Somos todos feministas” (2015) e “Para educar crianças feministas” (2017).

Em “Todos somos feministas”, adaptação do discurso feito em 2012 pela autora no TEDxEuston, conferência anual com foco na África, ela conta que foi por causa de um amigo de infância que abraçaria a causa das mulheres. Ao discutir sobre livros com Okoloma, quando tinha 14 anos de idade, o amigo afirmou: “Sabe de uma coisa, você é feminista”. Chimamanda sentiu como se ele a tivesse chamado de terrorista. Resolveu ir ao dicionário para saber o significado da palavra e descobriu que se relacionava com a questão dos direitos do sexo feminino. A partir daí, foi se tornando cada vez mais feminista, sem querer deixar de ser feliz, usar salto alto, batom, ser africana (os amigos diziam que feminismo era coisa de branca), e ter o direito de não casar, o que não significa que odeie os homens. Hoje ela acha que há muito o que fazer ainda no que diz respeito à questão dos gêneros: “A questão do gênero é importante em qualquer canto do mundo. É importante que comecemos a planejar e sonhar um mundo diferente. É assim que devemos começar: precisamos criar nossas filhas de uma maneira diferente. Também precisamos criar nossos filhos de uma maneira diferente”.

Vou ler os demais livros desta grande autora.

Dalu, Chimamanda.

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Serviço 

MEIO SOL AMARELO (Companhia das Letras, 504 págs.), de Chimamanda Ngozi Adichie. a partir de R$ R$ 33,50

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